Arquivo: Pregão de 1870 - Outro
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Bando Escholastico Vimaranense [Impresso]/A.M.F.-[Guimarães: s.n.], 1870 .- [1] f.; 42x29 cm.Um exemplar foi impresso s/ papel lilás, outro exemplar s/ papel verde. Restaurado com fita cola .
Recitado por A.M.F. |
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O terceiro bando escolástico que nos ficou das festas conturbadas de 1870 foi escrito e recitado por A. M. F(erreira), também conhecido pela sugestiva alcunha de Focinho de Porco. Este pregão, que se destaca por ser o mais longo de todos os que até à data se conheciam, tendo mais de duzentos versos, é um manifesto de rejeição da propalada morte da festa dos estudantes de Guimarães a S. Nicolau, não se ensaiando muito a decretar a “excomunhão maior sobre os traidores!”.
BANDO ESCOLÁSTICO
VIMARANENSE
RECITADO NO DIA 5 DE DEZEMBRO DE 1870
por
A. M. F.
Já soaram além dos cristalinos
As alegres canções, festivos hinos.
Com que a nobre classe em seu tributo,
Despindo os tristes crepes de seu luto,
Saúda com transporte a linda aurora,
Que vem mostrar-lhe a virgem protectora,
Dispensa-te a final de teus fadários!
No contínuo volver dicionários
Já basta de crestar louras pestanas.
Trabalho maçador! tantas semanas.
Em fadiga aturada, um ano inteiro.
De noite à escassa luz dum candeeiro,
Cansado a solfejar os substantivos?!
Justo foi, que por fim dias festivos
Manhecessem, por vós tão almejados.
Trabalhos compensar tão aturados.
Ergue-te amada prol! levanta a fronte!
Pois não vês como fulge, no horizonte,
A estrela, que julgáveis encoberta?!
É tempo de acordar – Então? alerta!
Que força vos detém nessa moleza?
Estareis por ventura na ecerteza
Da virgem tutelar ser já finada?
Ressurjo dentre vós mais animada:
Alento mais ganhei, ganhei mais vida
Nas suspeitas de ser já falecida.
Derrocando o sepulcro, triunfante,
Aquietar-vos vim, filhos, avante!
Que esta virgem por quem pranto correu
Está no meio de vós, olhai, sou Eu.
Roçaram já por mim muitos Janeiros.
Sem a lima voraz de tais obreiros,
Deslustrar-me um só raio desses brilhos,
Com que me inauguraram queridos filhos
Mentora aqui de tenras inteligências,
A muitos dei as chaves das ciências,
Guiando-lhes a luz dos seus talentos
À sombra destas asas vi portentos.
Aquele vês além. que, enverga a toga.
Aqueloutro acolá, que as leis advoga.
E tudo que se diz, classe distinta.
Com esses, que tu vês de banda à cinta,
E os tais meus senhores das lancetas
Pois indo enfim me deve as suas tretas.
. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
Passados já lá vão, oh! tantos anos,
Que vistes, raros filhos, sempre ufanos
Os futricas morderem-se de inveja.
Na aldeia fiz ouvir mais sertaneja
O estrondo festival desta alvorada;
Contente de vos ver entusiasmada:
Nas ruas corre a mãe da monarquia,
Ufana desta vossa regalia.
Sim, tu,ò Guimarães, a quem a história.
Páginas consagrou de excelsa glória
Despreza por um pouco áureos capítulos
Esquece-te por hoje desses títulos
Desse emblema real, o teu pelote
E tudo mais que enfim não cabe em mote;
Apressa-te a saudar com voz festiva
A tua singular prerrogativa.
Mas alguém traduziu neste convite,
Carta ampla, de alforria sem limite?
Não se enganem, meninos, que esta posse
Jamais em tempo algum causará tosse,
Ao futrica. Vem cá; olha, é contigo,
Aproxima-te, escuta que eu prossigo
Superior sempre às ondas turiferárias
Dos heróis das eternas luminárias
Que queriam minhas leis venalizadas
A troco de pastéis, de arrufadas
Ergui sempre meu colo sobranceira
Desdenhei oblações sempre altaneira
Conservando sem mancha o meu decoro
Mas alguém pensa acaso, por namoro.
Que esta virgem, que os deuses aconselha,
Há-de vir afinal baixar-lhe a orelha?
Pois não foste!... Eu, que vi o pergaminho
Suportar muito murro no focinho,
E depois ir de cara, como um rato,
De mergulho no tanque como um pato?
Suspensas desde já são garantias.
Se usurparem as nossas regalias.
Não exista a menor condescendência,
Para com os enjeitados da ciência.
Se cá pilhado for algum lapuz,
Fazei-lhe das guelas alcatruz.
Mas se algum escapou por malha larga.
Pode vir, meu senhor, ninguém o embarga...
Porém sempre lhe digo, que se tenta.
Ver-se-á entre a cruz e água-benta.
Não cuidem por que filhos me carpiram,
Que essas leis já d’outrora se aboliram!..
Mocada furiosa nos intrusos,
Que a nossa lei não é de parafusos...
Tomai o transgressor à vossa conta,
Vingai, ò filhos meus, vingai a afronta.
Que a virgem coronal não morre ainda!
Defunta como querem não estou linda?
Não julguem que falece desta feita
Oh! Longe e muito longe essa suspeita
Não pode o tempo em mim, sou imortal,
Esqueça-se para sempre o funeral
Com que jovens sobrinhos dos meus manos
Quiseram festejar meus verdes anos
Foi ilusão, meus filhos, foi surpresa…
Surjo mais radiante de beleza
Quanto mais me julgáveis definhada!
Morta?! Isso é cedo! Foi farsada!
E assentem que mesmo, quando morta
Inda hei-de ressurgir por outra porta….
Quando lá nos celestes aposentos
Se fizeram escutar esses mementos
Estava-se lá em cima com o almoço
Ao grito aterrador das carpideiras
Tremeram as deidades nas cadeiras!
E Júpiter, por ser muito nervoso,
Ouvindo o prantear angustioso
O lugubre entoar do cantochão,
De trémulo deixou cair da mão
A valiosa caixa de rapé,
Ao ver-me assim carpir à falsa-fé.
De todas – Vénus mais descautelada
Percebendo essa coisa bradeada,
Ouvindo aquele pio de agoureiro
Treme e cai-lhe a pescada do babeiro,
Mas o rico, senhores, foi Diana!...
Que estando nesse tempo da semana
Fazendo nesse dia de servente
De assustada caiu com um acidente
Ao tempo que, de pé, escava um alho,
Ficando interrompido o seu trabalho
Juro a mais infeliz, oh! coitadinha
Por um triz não morria com uma espinha!
E Neptuno, que ao pé esfregava um olho,
Pulando de terror entorna o molho.
Vulcano também foi surpreendido,
Distante olhava as horas distraído
No seu preciosícimo relógio,
Ouvindo recitar o necrológio.
Saltaram-lhe dos olhos as lunetas;
E as deusas, enfim, todas patetas,
Perderam na fugida seus toucados
Os deuses de tropé atrapalhados,
Sabendo a triste nova de surpresa,
Quebraram as correias dos sapatos.
Alguns houve, que enfim, mais timoratos
Ficaram com fanicos no caminho.
A final vi-me só com meu padrinho.
Mas Júpiter por ser que mais penetra.
Do triste canto expõe a triste letra,
E vendo já que a face me desbota
Por terra logo cai, e dá-lhe a gota!...
Decidida afinal mais animosa,
Ouvindo a juventude estudiosa,
Em prantos debulhada de saudade,
A estorcer-se nos braços da orfandade,
Generosa a chorar mentida morte,
Ergui-me furiosa e com voz forte.
No mor auge exclamei de meus furores:
Excomunhão maior sobre os traidores!
E mais veloz ainda que um foguete
Corri acolchetando o meu colete,
Duma vez convencer almas pequenas,
Que não morro inda assim, desmaio apenas.
Ergue-te, nobre classe, mais altiva.
Que a virgem coronal é ainda viva!
E com a nobre altivez do entusiasmo,
Assassina os traidores com o sarcasmo.
Não lembrem nunca mais mentidos prantos,
Com que vi sepultados meus encantos.
Inda não morro assim, caros amantes!...
Hão-de ser então frontes alvejantes,
Quem vir há-de enfim cerrar meus olhos*
Não são as tenras mãos desses pimpolhos
Quem há-de vir roçar meu casto rosto.
Se encurtado for o meu sol-posto,
E murcharem para vós as esperanças,
Acaso julgareis, loiras crianças…
Que expirando no leito do desleixo,
Haveis de vir por fim atar-me o queixo?
Arreda! meus ratões, tirai os cotos...
De tal vos livro eu, grandes marotos.
. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
A vós lindas flores, uma pergunta:
Julgáveis-me talvez também defunta?
Ainda não. Felizmente a virgem bela
Apenas desmaiou, por bagatela.
Por hoje que esse pranto fique enxuto!
Eis-me aqui! foi mentira! cesse o luto!
Sim; tu, gota de mel, do céu caída.
Para adoçar os agrores desta vida
Recebei dessa mágoa por cautério
Esse pomo envolvente dum mistério.
Ao colher das cestinhas para o regaço
Rubicundas maçãs com trémulo braço,
Raiava em vossas faces um sorriso
Que me fez relembrar do paraíso!...
Traduzi nesses frutos nacarados
Protestos mil de amor simbolizados.
Mas alto!... Quando falo tudo pasma?!
Talvez que eu seja tida por fantasma!...
Pois se alguém desconfia que morri,
Venha cá com franqueza toque aqui.
A. M. F.
Transcrição e comentários de António Amaro das Neves
Publicado originalmente em http://araduca.blogspot.pt/
Um blogue de
António Amaro das Neves
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