Arquivo: Pregão de 1870- Mais um contrapeso - Improviso alegórico
Além dos três pregões nas festas a S. Nicolau de 1870 foi lido, no dia 6 de Dezembro, um outro texto, escrito e recitado por A. M. Ferreira, também autor e declamador de um dos pregões que foram lidos na véspera. Tem o título de "Mais um contrapeso – Improviso alegórico" e tem inúmeras referências aos dias que antecederam aquele em que naquele ano se celebrou S. Nicolau, quando fala dos que tentaram usurpar os direitos dos estudantes (E eles que fazer? Tirar as vendas: / Amostrar nessas caras reverendas / O lugar que lhes cabe nestes dias...) ou da polémica que envolveu o levantamento do pinheiro, no dia 29 de Novembro (Que a bandeira, que víeis hasteada / Já por terra caiu de envergonhada!...), e que motivou uma intervenção musculada de uma força de cinquenta militares (Confesse, sim, senhor, estava pateta,/ Quando hostil carregou à baioneta).
Não sabemos quem seja este A. M. F., a não ser que a última inicial da abreviatura é de Ferreira. Existiu um condutor de obras públicas de Guimarães a exercer funções no final do século XIX chamado António Martins Ferreira, porventura familiar de um Francisco Martins Ferreira, que aparece nas celebrações do 1.º de Dezembro de 1895 promovidas pelos estudantes de Guimarães. Terão alguma relação entre si e com o A. M. F., vulgo Focinho de Porco?
Mais um contrapeso
Improviso alegórico
Recitado no dia 6 de Dezembro de 1870 por A. M. F.
[Minerva em conjecturas]
Quão tristonha me sinto, caros filhos,
Apesar destas galas, destes brilhos!
Que ideia tão terrível me atormenta!
Porventura estarei eu hoje isenta,
No meio desse grande rebulício,
De ver talvez algum mestre de ofício,
Disfarçado por aí em realengo,
Em francês, madrileno ou flamengo,
Arrogar-se direitos tão sagrados,
Usurpando o lugar de meus amados?...
Oh! nunca ! Sim, briosa mocidade,
Acaso terei eu a infelicidade,
De no meio de tanta multidão,
Sacrílega sair sem punição,
A mão, que amarrotar a minha coroa?!
O estrondo festival que ao longe soa
Vem buscar a meu seio horrível eco.
Porventura andará algum boneco,
Entrajado nos feros de estudante;
Sapateiro?... Talvez — negociante!
No meio de tão grande marafunda,
Não sei donde essa gente é oriunda:
Porém, oh! sossegai caros amantes
Que todos talvez sejam estudantes...
Criada sempre fui para melhor sorte;
Oh! filhos! isso não: antes a morte!!
Então antes chorar-me, ó carpideiras!...
Quanto melhor me fora que as parteiras...
Sem dó me estrangulassem ao nascer...
Oh! mil vezes melhor do que sofrer,
Cuspidos nesta face virginal,
Horrores...! um insulto sem igual!
Sim, recua, traidor, suspende o braço!
Não queiras ver cair em meu regaço
Murchadas dum pestífero bafejo,
As flores, que viçosas hoje vejo.
Mas para quê, filhos meus, tanto delírio?
Assaz já compensastes o martírio,
De verdes usurpados os direitos,
Para que a virgem vos tinha bem eleitos.
Orgulhai-vos, ó filhos da ciência,
A glória está sempre na prudência:
E gritem os pulmões quanto se possa
Avante! que a vitória é sempre nossa.
Parece-me ouvir já ranger os dentes,
A essa grã caterva de imprudentes,
Ao ver-vos todos, classe genuína,
Estudantes na gema — papa fina...
Além via-se a classe rareando,
Reforçada afinal por contrabando...
Aqui rostos enérgicos de estudo
Bem mostram que não são anjos de entrudo…
E eles que fazer? Tirar as vendas:
Amostrar nessas caras reverendas
O lugar que lhes cabe nestes dias...
Que não estão a carácter as folias,
De quem renunciou a estes foros.
Acima disto são sempre os decoros.
Escárnio das vestes de profetas,
Trocar santa missão pelas cornetas...
Melhor fora que em vez deste sudário,
Pegasse cada qual no seu rosário,
E escondendo essas frases de arreeiro,
Fosse em coro rezar ao padroeiro.
Mas escutem que lá têm o seu castigo;
Pois não têm os seus actos ao abrigo,
Duma severa crítica ilustrada.
Sabeis vós, pois, que mais, filhos? Mais nada:
Que a despeito da lei ser de funil
Não quero ter o nome de imbecil.
Vitoriosos, sim, cara risonha...
Não temos passo algum que ter vergonha.
Tivemos dita feliz, feliz ventura,
De reinar entre nós sempre a cordura.
No gozo duma plena liberdade
Acatou-se o rigor da autoridade;
Apesar de se estar na Babilónia...
Resultado talvez de grande insónia...
De melhor ser talvez estar no inferno...
Pois que tudo assumia o seu governo...
Quem quer se arvora em cabo de polícia…
Afora os desconchavos da milícia,
Nada tive sequer a lamentar,
Procedimento vosso a censurar.
Magoaram-me sim esses furores,
Que supérfluos sofrestes, meus amores.
Confesse, sim, senhor, estava pateta,
Quando hostil carregou à baioneta.
Pois que fim tinha em vista quando o fez?
— Desmentir proclamada pacatez ?
Porém não se incomode D. Quixote
Não quero dar-lhe as honras deste mote
Quadrava bem melhor com a sua história,
Conduzir suas mãos à palmatória...
Mas esqueçam-se, por fim, trágicas cenas,
Errado proceder de almas pequenas.
Regozija-te, sim, amada prole,
Não pode contra nós o Rocambole !..
Refervam por aí vivas mais que humanos
Que nós somos bem mais que prussianos!...
Exulta, Guimarães, de grão prazer!
Aqueles que te ouviram manhecer,
Pasmaram de te ver esbordar de gala.
O eco festival que ao longe estala,
Até já demonstrou aos lugarejos
O brilho sem igual destes festejos.
Avante, filhos meus!... eia... repito!
Vitória digam todos num só grito,
Que a bandeira, que viéis hasteada
Já por terra caiu de envergonhada!...
Teve a sorte que têm grandes impérios!...
Não se explica, senhores, são mistérios,...
Este enigma haverá quem o desate?
Da festa eis o final!... eis o remate!!!
A. M. F.
Transcrição e comentários de António Amaro das Neves
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