Irmandade de S. Nicolau

Corpos Gerentes da Irmandade - Século XVII e XVIII 
Corpos Gerentes da Irmandade - Século XIX
Corpos Gerentes da Irmandade - Século XX
Corpos Gerentes da Irmandade - Século XXI

Irmandade de S. Nicolau – Boletim para admissão de irmãos

6 de Dezembro de 2008

SOB O SIGNO DE S. NICOLAU 

Dr.ª Manuela de Alcântara Santos
Directora do Museu de Alberto Sampaio

A Irmandade de S. Nicolau Bispo de Mira, erecta na Igreja da Insigne e Real Colegiada de Nossa Senhora da Oliveira, em Guimarães, é uma instituição três vezes secular, já que o seu compromisso- mais tarde conhecido por Estatutos Velhos- foi assinado em 6 de Dezembro de 1691.Porém, podemos afirmar que nesse dia apenas se oficializou uma associação que já existia efectivamente, havia pelo menos algumas décadas.

É difícil dizer com precisão quando é que pela primeira vez os estudantes de Guimarães se organizaram para, voluntariamente e em comum, promoverem determinados actos de culto público em louvor de S. Nicolau. O dia litúrgico do Santo já na Idade Média era comemorado com alegres manifestações infantis ou juvenis em toda a Europa cristã, especialmente nos locais onde havia comunidades escolares, e representava de alguma maneira a abertura do ciclo dos festejos de inverno. Estas festas de inverno, toleradas pelas autoridades eclesiásticas, assumiam frequentemente aspectos profanos e até irreverentes, como cortejos, danças, mascaradas, dentro e fora das igrejas.

Em Guimarães, no século XVII, também a juventude escolar realizava uma função em honra do seu Patrono. Sabe-se que em dia de S. Nicolau era costume os estudantes andarem a cavalo, usando paramentos eclesiásticos e "cauzando turbações na villa e m.tas indecensias", segundo as palavras condenatórias de um visitador em 1675, ao proibir, sob pena de excomunhão, o empréstimo das vestimentas sacras da Colegiada. A realização das festas de S. Nicolau pressupunha a existência de uma qualquer organização, que terá evoluído de efémeras comissões ad hoc para uma estrutura com carácter permanente. É neste contexto que nos aparece a Irmandade de S. Nicolau, como herdeira e continuadora de uma tradição ancestral.

A mais antiga referência conhecida à Irmandade data de 1661, anterior, portanto, à formalização da sua criação. Nessa altura, já possuía a dinâmica necessária para conseguir erguer uma capela de invocação do glorioso S. Nicolau Bispo, que infelizmente foi desmantelada em 1970/71, mas que muitos ainda conheceram integrada no templo da Colegiada. Naquela data de 1661, os "mordomos da Confraria de São Nicolau" assinaram um minucioso contrato com o mestre de pedraria Domingos Lourenço, de Monte Largo, para a construção de "hua Capella para o ditto Santo ... junto a porta travessa de Contra a Rua de Santa . no quintal do SanCristão", não muito longe da Capela de Santo Estêvão. A obra não começou imediatamente. Só no ano seguinte, em Maio de 1662, foi feita uma petição aos cónegos da Colegiada para a cedência do referido terreno, invocando os peticionários que havia muitos anos tinham "tensão e devoção de fazerem uma capela da invocação do glorioso S. Nicolau Bispo pª. nela levantarem Confraria e Irmandade". Em 1663, conforme se depreende da inscrição que existia no respectivo arco de entrada, a capela estava concluída. É sabido que foi paga com os dinheiros que os estudantes da vila ganharam em comédias e danças, feitas "por devoção ao Santo e para aumento da Capela".

Temos, portanto, que em 1663 havia em Guimarães uma corporação religiosa sob a invocação de S. Nicolau que, ainda sem decreto formal de erecção e sem estatutos aprovados, era considerada como Irmandade ou Confraria e como tal organizada, com o seu santo patrono, um local de culto privativo, uma sede própria.

Quem constituía a Irmandade de S. Nicolau? Quem poderia ser irmão? Os primitivos Estatutos declaram expressamente, no capítulo VIII: "Todo o Sacerdote, Beneficiado, Letrado e Estudante que assistir em esta Vila e quiser entrar nesta santa Irmandade, dará de esmola (...), e não se admitirão senão os acima referidos". É de crer que, por vezes, se tivessem levantado dúvidas acerca de quem poderia efectivamente ser considerado estudante - então como agora. Os Estatutos de 1863 pretendem clarificar a questão, estabelecendo taxativamente que, para efeitos de admissão, serão considerados estudantes "todos aquelles que frequentarem, ou tiverem frequentado qualquer aula de Latim por tempo pelo menos de seis meses". E afirma-se que perdem o direito de serem admitidos ou, já o sendo, de se incorporarem na Irmandade, os que se empregarem em alguma profissão ou ofício mecânico, ou casarem, ou abraçarem a vida comercial ou assentarem praça nos corpos de primeira linha ou servirem qualquer cargo público civil ou militar. Nesse caso, apenas "será contado como Irmão para efeitos de sufrágio por sua morte".

Como nas velhas confrarias medievais, os membros da Irmandade de S. Nicolau estavam unidos por um vínculo de afinidade laboral: todos eram ou tinham sido estudantes. Mas os Estatutos fazem questão de diferenciar o labor intelectual das actividades consideradas "vis" dos oficiais mecânicos, bem como do trabalho remunerado das outras profissões. A Irmandade de S. Nicolau, que contou entre os seus membros muitos eclesiásticos, configura, portanto, um certo escol sócio-cultural.

Associação de fiéis constituída organicamente para o incremento do culto público, a Irmandade de S. Nicolau é, por isso mesmo e acima de tudo, uma instituição de carácter religioso. A sua actividade polariza-se em torno da festa do Padroeiro, da celebração semanal de uma missa aplicada pelos irmãos vivos e defuntos em geral, dos sufrágios pelos irmãos falecidos, da presença colectiva em procissões ou outras solenidades. Quando um irmão falecia era obrigação estatutária dos restantes incorporarem-se no funeral e mandarem celebrar missas pelo defunto, em número que variou conforme as épocas. Na segunda metade do século XIX, ofereciam-se oito velas de cera para o ofício de corpo presente e, em Novembro ou Dezembro, havia um "aniversário" composto de missas e ofícios por todos os irmãos falecidos. E certamente a Irmandade incorporar-se-ia na solene procissão do Corpo de Deus, em que era costume a presença de todas as confrarias de Guimarães.

Outro tipo de actividades a que a Irmandade se dedicava nos primeiros tempos da sua existência, como seja a organização de comédias e danças, deve entender-se não como uma finalidade, mas como um meio de angariar fundos, ao serviço dos objectivos de índole religiosa. Aliás em 1738 já não havia "o dito ministério".

De todos os actos de culto que promovia, a festividade em honra do Santo Patrono terá sido a mais importante, já que estará na origem e na razão de ser principal da Irmandade. "Ordenamos que a festa de S. Nicolau se faça no seu dia, e querendo-a transferir o possam fazer até ao mês de Maio, e não mais adiante. Assistirá na festa o juiz mais os Oficiais, com suas medalhas penduradas ao pescoço por uma fita branca, e o que não assistir, estando na terra, o juiz o condenará em uma libra de cera fina" - lê-se no capítulo I do Compromisso de 1691.

S .Nicolau é celebrado, como é sabido, a 6 de Dezembro. Mas como os Estatutos Velhos permitiam uma certa liberdade a tal respeito, nem sempre a Irmandade o festejava naquela precisa data. Se no primeiro de Dezembro de 1799 determinou que a festa se celebrasse no dia próprio, em 5 de Dezembro de 1820 ficou assente, decerto por conveniência prática, que a comemoração se pudesse transferir para o domingo imediato a 6 de Dezembro, ou outro qualquer seguinte, havendo impedimento naquele. Ao longo dos anos o programa comportou algumas variantes. Em 1732 e em anos seguintes, a festa metia gaiteiro, enquanto na segunda metade do século XVIII havia tambores e clarim, ou gaiteiro e tambor, ou de novo tambor e clarim. Em 1797, a função fez-se a 26 de Abril e incluiu exposição, música, armação na igreja, uma dúzia de foguetões, outra dúzia de foguetes e outra de nozes de pólvora. Duas companhias de soldados e dois tambores acompanharam a procissão. O Santo vestia um roquete engomado de novo e uma mitra de papelão forrado a setim. Na torre arderam luminárias de alcatrão. Sessenta anos depois, procura-se que na festa do nosso Santo Patrono seja (...) feita com o maior esplendor possível havendo exposição do Santíssimo Sacramento, Missa Solene a música de instrumental ou a órgão, e sermão. Hoje ainda, embora sem tanta solenidade litúrgica, continua a Irmandade a assinalar a festa do seu Padroeiro.
.....
Além do culto, uma irmandade tem sempre outras finalidade: o auxílio mútuo entre irmãos, tanto no plano espiritual como no material.Já vimos como se traduzia o auxílio espiritual a vivos e defuntos: a missa semanal, os aniversários e sufrágios.Do exame do "Livro dos Termos da Meza", fica-nos a impressão de que o auxílio material seria pouco frequente por não haver irmãos dele carecidos. Porém a partir de 1912, por força da legislação republicana que procura esvaziar as irmandades das suas finalidades religiosas, a Irmandade de S. Nicolau intensifica e diversifica as propostas de assistência mútua. Para além de socorros pecuniários em caso de doença ou de velhice, os Adicionais aos Estatutos admitem que a Irmandade conceda, a seus irmãos pobres, facultativo e medicamentos; auxílio para uso de banhos de mar ou de termas, quando prescritos por facultativo; livros e vestuário para a educação e instrução de seus filhos; subsídios às viúvas necessitadas de irmãos falecidos. Passa a haver, no orçamento da Irmandade, uma verba consignada para tais fins; no caso dela não ser utilizada na íntegra, o remanescente revertia a favor de creches, asilos de infância e de inválidos, albergues e outras instituições pias da cidade, conforme a Mesa delibera.

Aliás, desde sempre, os cofres da Irmandade estavam habituados a abrir-se aos que recorriam à sua caridade. Ora davam uma ajuda para a "construção da sumptuosa igreja do Campo da Feira" ( 1778 ), ora contribuíam com dádivas em dinheiro para o Hospital da Santa Casa da Misericórdia; ou para socorro dos presos pobres das cadeias locais, proibidos de sair a pedir esmola; para os expostos; para a Vila da Praia, em Cabo Verde, flagelada por um espantoso terramoto; para ajuda do ordenado da mestra pública de meninas; para o Sumo Pontífice Pio IX, expulso da sua sé e estados; para a sopa económica; para os lisboetas flagelados pela peste; para o Asilo de Infância Desvalida denominado de Santa Estefânia; etc, etc. O rol de esmolas não tem fim, como o saco não tinha fundo. A Irmandade de S. Nicolau era, como hoje diríamos, uma verdadeira instituição de solidariedade social.
E o curioso é que até os poderes públicos, em seus apertos, pediam e foram contemplados com contribuições voluntárias: em 1808 "pa a actoal urgençia da Guerra"; em 1828, "para as precisões do estado".

Mas há um outro aspecto da vida da Irmandade que, por menos conhecido, merece a nossa atenção. Refiro-me à sua actividade financeira.
Está por estudar o papel desempenhado no nosso país, nos séculos XVII, XVIII e XIX, pelas corporações religiosas na atracção de capitais e na sua posterior mobilidade. Se parte importante desses capitais era absorvida por colocações improdutivas ( de natureza religiosa, artística ou sumptuária), outra parte passa a circular através do crédito, tornando-se factor de investimento e de desenvolvimento económico.

Sabemos que, em Guimarães, os capitais das irmandades, cabido e ordens religiosas que andavam no giro dos empréstimos a juros atingiam somas respeitáveis. E não se pense que eram operações clandestinas. As instituições credoras pagavam a décima à Câmara e nos registos notariais abundam escrituras de transacções deste tipo. Sendo os empréstimos uma actividade arriscada em épocas de crises económicas ou de instabilidade financeira, eram sempre feitos com garantia de fiança e de hipoteca, mediante actos notariais devidamente registados.

A Irmandade de S. Nicolau não foi uma excepção neste quadro. Apesar dos seus cabedais serem relativamente modestos em relação a muitas das suas congéneres locais, também ela emprestava a particulares, à Câmara e até a Sua Magestade Fidelíssima. Havia um livro onde a Irmandade lançava os assentos dos dinheiros que tinha a juros e no Arquivo Municipal Alfredo Pimenta ainda se conservam algumas guias de receita, que acompanhavam a entrega de juros ao tesoureiro da Irmandade.

A taxa de juro corrente, em meados do século XIX, era de 5% ao ano, o que pode considerar-se compensador numa economia pré-industrial.

Contudo, o negócio não era isento de riscos, e nem mesmo as precauções de que a Irmandade se rodeava impediram que tivesse sofrido alguns reveses financeiros. Vejamos alguns casos concretos de bons e maus negócios, entre muitos que se poderiam apresentar.

Julho de 1788 - São dadas por falidas várias dívidas antigas e incobráveis, no valor global de 206$000.

6 de Julho de 1790 - Na sequência de uma provisão da Rainha D. Maria I, a Irmandade de S. Nicolau entrega ao corregedor da comarca a quantia de 57$000, para ajuda da "abertura e construção de huma boua estrada pela qual se possa transitar dessa villa de Guimarães ate á cidade do Porto com facilidade e commodidade". A Rainha oferece o juro de 5% ao ano e dá como garantia os sobejos das sisas. Os juros foram pagos até 1829. A partir daí, nem juros nem capital. Passados largos anos, um tesoureiro desiludido decide contabilizar a verba como crédito falido e como tal não rendível. Finalmente em 1904 a dívida foi deduzida de 24$000 . 4 de Março de 1862 - Por escritura desta data, a Irmandade torna-se credora de D. Doroteia de Noronha Menezes Portugal, a quem empresta a juros a quantia de 1600$000, para concluir a obra da sua casa situada na Rua da Bandeira em Viana do Castelo. A devedora faz hipoteca geral de todos os seus bens móveis, semoventes e de raiz, e pelo pagamento respondem ainda três fiadores. A importância foi integralmente paga em 1869, de juros e capital, assinando-se a respectiva escritura de pagamento e quitação.

11 de Julho de 1863 - A Ilustríssima Câmara Municipal, autorizada por carta de lei, toma da Irmandade de S. Nicolau, ao juro anual de 6% a quantia de 500$000 em bom dinheiro de metal sonante, emitindo cinco títulos de dívida de 100$000 cada, e garantindo o pagamento de capital e juros através da receita de vários impostos (49). A dívida foi progressivamente amortizada ao longo de doze anos.

Havia, por vezes, situações complexas, quando era preciso pôr em arrematação pública os bens hipotecados ou quando um devedor transferia a dívida para terceiros, sob determinadas condições. Está neste caso o R.d0 José António Rebelo, da freguesia de Aniçó, que em 1828 tomou a juros na Irmandade a quantia de 700$000, dos quais 330$000 em metal sonante e o restante em papel moeda. Doou entretanto os bens aos sobrinhos, impondo- lhes o pagamento da dívida. Em 1847 estes negociaram com a Irmandade, que acaba por aceitar o pagamento com rebate da moeda papel a 60% e 40%, respectivamente no que diz respeito ao capital e aos juros, apesar do câmbio, no mercado ser de 70%.

Com a criação de bancos locais, a Irmandade acreditou que se abria uma nova possibilidade de investimento. Em 1875, possui entre os seus valores rendíveis três promissórias do Banco de Guimarães, uma no valor de 63$860, outra de 200$000 e a terceira de 78$040. Mas a vida do Banco foi curta e difícil. Em 1896, já as referidas promissórias são consideradas "capital duvidoso"; em 1899 ainda se recebe da massa falida 25% do capital; em 1903 estava o Banco em liquidação judicial e finalmente, a 30 de Julho de 1931, o tesoureiro escreve no Inventário: "Diminuição do capital pela eliminação da dívida falida do extinto Banco de Guimarães, liquidado judicialmente há muitos anos".

Trastes, alfaias e objectos mais relevantes

Focadas as actividades religiosas, sociais e financeiras da Irmandade de S. Nicolau, é tempo de referirmos, embora sem pretensões de exaustividade, os seus trastes, alfaias e objectos mais relevantes. Juntamente com as ordens religiosas e a Colegiada, as irmandades vimaranenses, durante séculos, fizeram viver e trabalhar, com as suas encomendas, pedreiros, canteiros, afifanos, carpinteiros, ferreiros, entalhadores, escultores, pintores, douradores, prateiros, ouriveseiros, paramenteiros e cereiros. Não havia irmandade sem a sua capela ou altar, sem a imagem do santo padroeiro, sem a cruz para alçar nas procissões, sem o "almário" ou caixão para guardar a cera, os bens móveis e as escrituras.

Os Estatutos de 1863 são ainda mais esclarecedores sobre o que o servo deve envergar dos pés à cabeça: "trajará chimarra, capa e cabeção roxo, volta branca, chapéu de bicos, sapatos e meias pretas, tudo à custa da Irmandade". No Inventário desse mesmo ano, lá vêm mencionados a capa, a loba, o chapéu e o roquete do uso do servo, que, em 1930/31 são considerados "em muito mau estado". Só nessa data foi encontrado citada"Uma medalha pequena com as armas do Padroeiro que serve para uso da batina do servo". Esta medalha e um velho chapéu embicado ainda existem entre os bens da Irmandade.

O tesouro da Irmandade de S. Nicolau compreende quatro tipos de peças de prata: a cruz processional, as medalhas dos Irmãos e do servo, as varas que serviam de insígnia aos principais mesários, o báculo da imagem do Santo Padroeiro. Cada uma dessas peças tem a sua história, que os livros que chegaram até nós ou as cópias preciosas que João Lopes de Faria fez de outros desaparecidos deixam adivinhar.

Desde sempre a Irmandade de S.Nicolau teve a sua cruz, como se depreende do compromisso de 1691. Cabia então ao tesoureiro levá-la nas missas dos domingos, e ao mordomo mais novo empunhá-la no acompanhamento dos irmãos falecidos. Ignoramos, contudo, de que material era feita.
Em 1732 está documentada a existência de uma cruz de prata lisa, de oito medalhas e de três varas também de prata lisa.

Porém, a 1 de Fevereiro de 1808, um decreto do governo presidido pelo general Junot exige que seja entregue a prata das instituições religiosas. E é em cumprimento dessa legislação que a 22 de Março, na vila de Guimarães, nas casas do tesoureiro geral da décima António José de Macedo e na presença do juiz de fora Dr. José Freire de Andrade, o tesoureiro da Irmandade de S. Nicolau, António Leite Pereira da Costa Bernardes, entrega - imagina-se com que revolta e desgosto - "Huma crus e tres varas de mão que pezou sinco arateis e quinze onças", pesadas pelo contraste José Baptista dos Reis. No livro de contas da Irmandade fica uma referência a gastos "com a prata que foi para Lisboa" ( 720 reis ) e "com uma cruz de latão prateada nova" (33$600). Anos mais tarde é novamente lançada, à mistura com outros gastos miúdos e certamente com atraso, uma verba "para a prata que foi para o Junó"(93).
Uma cruz de latão era humilhante para uma Irmandade habituada a apresentar-se em público com outra dignidade. Por isso os Irmãos, reunidos a 5 de Dezembro de 1820 por ocasião da eleição anual assentaram "Que sefará hua crus de prata desente p.las sobras dorendimento que sejuntarão separadamente para este fim". Mas porque não tivesse havido sobras do rendimento ou por qualquer outro motivo, o assunto não teve sequência imediata. Só em 1822, a 26 de Abril, a Irmandade toma uma série de resoluções que têm a ver com a sua imagem, e, entre elas, determina "Que mandassem fazer por bons oficiais uma cruz nova de prata de beleza moderna, e 24 medalhas de prata da melhor, visto a cruz actual não ser daquele metal, ser muito antiga indecente e não poder fazer concorrência com as das outras corporações nas funções públicas, ocorrendo as mesmas razões a respeito das oito medalhas, que haviam somente, à excepção de serem de prata, mas mui antigas, e sem a delicadeza que ora demanda o tempo". A feitura das novas medalhas incumbia à Irmandade, a fim de serem todas uniformes; e não precisando esta mais do que vinte e quatro ao todo, poderiam eventualmente refundir-se as antigas. Medalhas e cruz seriam entregues aos tesoureiros, que delas ficariam responsáveis, e custear-se-iam com as sobras ou, não as havendo, com o casco.

Esta segunda cruz de prata foi paga em 1824, e conhecemos discriminadamente o seu preço:
pelo risco pequeno da cruz- 480
e pelo grande 1$600 pelo peso de toda a prata da cruz que são 21 marcos,
2/0 e 5/oit a 6$400 reis- 136$550
solda de prata para soldar os latões- 1$200
peso de todo o latão que são 9 m(arcos), 11 o(onças) a 400 reis- 3$900
cruz de pao, vara e ferrão- 960
ouro para se dourar- 33$225
feitio por cada marco conforme ajustou o juiz e vários mesários a 2400 reis o marco ( pesa
toda a prata e latão 39m, lo e 4/8 )- 93$600
ao dourador pelo dourar- 7$200
água forte, azougue e carvão- 2$595
Soma- 289$320

A nova cruz guardava-se num caixão, resguardada em sua manga de baeta verde, o que não obstou a que algumas das suas peças de latão e prata se tivessem desencaminhado "por motivo de barulhos" e que, para poder servir de novo, houvesse necessidade de a mandar completar em 18.04.1837.
As vinte e cinco medalhas, e não as vinte e quatro previstas, foram igualmente mandadas fazer, em 1822/23. A respectiva prata importou em 22$900 e o feitio em 15$200, o que soma 38$100. Gastaram-se 5$670 com 31,5 varas de setim branco compradas a um tal Graça a 180 rs a vara, mais 140 rs de fita para duas medalhas velhas, e pagaram-se 340 rs "ao sirgueiro por assear as medalhas com as fitas".

A Irmandade de S. Nicolau podia de novo apresentar-se em público com toda a dignidade e aparato. Mas eis que, passados alguns anos, um infausto acontecimento vem perturbar a vida da instituição. Demos a palavra ao respectivo juiz: "No dia 24 de Março de 1840 pela manhã apareceu roubada a nossa cruz de prata da nossa Casa de Despacho em outro tempo capela, aparecendo a porta e mais partes sem arrombamento só a língua da porta corrida, e o caixão onde estava a cruz aberto só com o espelho tirado, e sem arrombamento." O caso foi comunicado às autoridades, que iniciaram as suas investigações. Reuniram-se de imediato os Irmãos, que cometem à Mesa "prosseguisse nas mais sérias indagações, para esclarecer cabalmente a Irmandade".

Até a baeta verde desapareceu. Só o pé de madeira escapou ao ladrão e também uma peça avulsa, certamente dessoldada, parte de prata e parte de bronze, que veio a ser vendida e cuja receita entrou em contas. O tesoureiro de 1840 foi judicialmente responsabilizado pelo facto. Mas esta segunda cruz de prata nunca mais apareceu.

Passados quatro anos e perdidas as esperanças de conseguir a restituição da cruz roubada, "sendo de necessidade que a Irmandade tenha a cruz para os seus actos sendo até indecoroso o aparecimento da Irmandade nos actos públicos sem ela", decide-se aceitar a oferta do Irmão e Beneficiado José António de Novais, que se propõe adiantar o dinheiro necessário para a dita nova cruz; a despesa será regulada pouco mais ou menos pela que se fez com a outra furtada e requerer-se-à autorização ao Conselho de Distrito.

Esta terceira cruz de prata da Irmandade de S. Nicolau, semelhante mas mais leve que a anterior, teve o seu peso lançado no livro de contas de 1849/50, o que nos leva a concluir ter sido paga nessa altura, e executada em data muito próxima. Infelizmente esse livro desapareceu sem ter sido copiado por João Lopes de Faria. Em 1863 era avaliada em 87$400 e dava- se-lhe, quanto à prata, o peso de doze marcos e dez e meia onça(106).

É essa a cruz processional agora depositada no Museu de Alberto Sampaio, obra de oficina vimaranense em meados do século XIX.

Trata-se de uma peça de grandes dimensões (1150 mm x 515 mm) e de boa execução combinando a prata com o latão dourado. O corpo da cruz é de prata lisa; são de latão dourado as aplicações aparafusadas às extremidades das quatro hastes, a imagem de Cristo, a glória de raios setiformes que preenche o espaço entre os braços da cruz, as grinaldas sobrepostas ao nó em forma de urna. Da haste inferior destaca-se uma frágil crossa com a legenda gravada " ESURIVI ENIM ET DEDISTIS MIHI.../S. MAT. C. 25 V. 35 do outro uma mitra com decoração floral relevada - tudo de prata. As insígnias episcopais evocam o Santo Bispo de Mira, evidenciando que a peça foi expressamente concebida para a Irmandade de S. Nicolau.

Um dos motivos de maior interesse desta cruz reside no facto de apresentar punções tanto de ensaiador como de ourives. Este último, várias vezes repetido, consta das iniciais I/fl ; pertence a ourives vimaranense ainda não identificado, mas já referenciado (Vidal e Almeida nQ 2711 ). O primeiro - o "G" de Guimarães - corresponde ao nQ 214 de Vidal e Almeida e foi usado pelo contraste municipal Zeferino Augusto César. Esse contraste, de actividade conhecida até 1887, usou várias marcas diferentes. A marca em questão diz respeito ao período da sua actividade que Fernando Moitinho de Almeida situa em "fins do século XIX -1881".

Escreveu o mesmo investigador em 1984: "Ainda há muito a fazer para se poder estabelecer uma correcta cronologia para as marcas dos ensaiadores de prata de Guimarães". A cruz de S. Nicolau ajuda-nos a precisar essa cronologia; permite recuar para meados do século XIX o limite inicial da actividade conhecida do contraste da prata Zeferino Augusto César.

Voltemos novamente às medalhas distintivas dos Irmãos, que estes ostentavam quando saíam em Irmandade. Inicialmente, eram de uso pelos Irmãos oficiais da Mesa(111), e, portanto, em número reduzido: oito medalhas de prata inventariadas em 1732(112), o mesmo número confirmado em 1822. Não se sabe como escaparam às exigências de Junot, se por estarem na posse dos diferentes mesários, se por serem fáceis de escamotear. Vimos depois como a 26 de Abril de 1822, foi deliberado mandar fazer vinte e quatro medalhas de prata da melhor, "uniformes", para que "deste modo se promova visivelmente o esplendor e zelo devido com uma módica despesa". Sabemos que acabaram por ser feitas vinte e cinco medalhas, conhecemos as verbas que com elas foram gastas em 1822/23, sabemos mesmo que, das antigas, três escaparam ao cadinho. Passaram a ser, portanto, em número de vinte e oito (116). Algumas décadas depois esse número era insuficiente e "muitas vezes deixam de acompanhar os mesmos irmãos as procissões por falta delias". Em Dezembro de 1861 foi decidido mandar proceder à reforma das fitas das medalhas que disso precisassem, e encomendar mais vinte medalhas de prata, passando a haver um total de quarente e oito). Dessas quarenta e oito subsistem quarenta e sete, confiadas agora à guarda do Museu de Alberto Sampaio: quarenta e quatro são quase iguais, duas de outro modelo, uma terceira diferente das anteriores, sendo estas últimas, presumivelmente, as mais antigas. São de forma circular ou ligeiramente oval, vasadas, tendo ao centro, recortada, a imagem de S. Nicolau, barbudo, revestido de capa, mitra e báculo, com a mão direita erguida em gesto de abençoar. As quarenta e quatro estão suspensas de uma laça e apresentam no aro exterior vinte e seis contas facetadas, diferindo as restantes no modo de suspensão e no aro. Nenhuma tem aposta qualquer marca.

O medalhão circular de base de latão forrada de veludo vermelho escuro, tendo sobrepostas as "armas do Padroeiro" - livro, báculo e cruz cruzados, mitra, chapéu episcopal com borlas - é apenas mencionado em 1930/31, com a indicação de que "serve para uso da batina do servo".

As varas de confraria ou varas de mão, insígnias de poder, eram de uso dos três primeiros mesários: juiz, secretário e tesoureiro. A confraria de S. Nicolau possuía três varas de prata lisa, aquelas que, em 1808, foram entregues por ordem de Junot. Essa perda veio a ser compensada bastante mais tarde, por decisão da Mesa de 22.04.1857:" Resolveu-se finalmente que, impetrada e obtida a necessária auctorização se mandem fazer pelas sobras existentes, trez varas de prata de que devem uzar os trez primeiros Mezarios, quando tenha de reunir a Irmandade a qualquer acto publico religioso".

Essas três varas chegaram até aos nossos dias. São todas muito semelhantes, diferindo apenas no comprimento, pois medem, respectivamente, 1550 mm, 1560 mm e 1780 mm. Cada uma delas é constituída por cinco segmentos que encaixam uns nos outros, unidos por anéis moldurados. Apresentam o remate superior em forma de botão floral e, na base do segmento do topo, um anel exterior com a imagem do Santo Bispo de Mira e a legenda identificadora flS. NICOLAU". Os vários segmentos estão marcados com as mesmas marcas que a cruz da Irmandade feita em 1849/50: de ourives (Vidal e Almeida nQ 2711) e de contraste (o "G" usado por Zeferino Augusto César - Vidal e Almeida nQ 214 ). Têm ainda a marca de toque: um X, de dez dinheiros.

Existe uma quarta vara, de 1634 mm de comprimento, formada por seis segmentos, mas sem anel exterior, sem imagem, sem legenda. Será de época próxima das anteriores, presumivelmente um pouco mais recente, e é obra do mesmo ourives, de que apresenta a marca já nossa conhecida. Tem também marca de toque e, como marca de cidade, o "G" de Zeferino Augusto César, mas numa variante diferente da das três varas de 1857 (Vidal e Almeida nô 208).

Uma quinta vara, de 1780 mm de comprimento e de seis segmentos, está em pior estado de conservação: parcialmente rachada, tem vestígios de remate superior quebrado e apenas um fragmento de anel exterior, com sinais de ter tido uma imagem. Não tem marcas, o que dificulta qualquer datação. O inventário de 1863 regista apenas três varas de prata, a que atribui o valor global de 41$000.

O ourives IA3 era indubitavelmente o artista preferido pela Irmandade. Depois da cruz e das varas, coube-lhe ainda realizar, em 1862, o báculo de prata destinado à imagem de S. Nicolau que figurava na sua capela.

Foi a 28 de Dezembro de 1861, exactamente naquela reunião em que igualmente se resolveu aumentar de 20 o número das medalhas dos Irmãos, que pelo juiz "foi proposto que não tendo o Padroeiro desta Santa Irmandade um Báculo de prata para seu adorno e muito principalmente para o dia da sua festividade, vendo-se a Meza na necessidade de o pedir emprestado, julgava elle juiz que esta Irmandade tendo como tem meios suficientes devia mandar fazer o dito Báculo para adorno e decencia do seu Padroeiro". Aprovada a proposta foi o irmão tesoureiro autorizado a fazer a despesa necessária, aplicando as sobras existentes de contas passadas.

O báculo de S. Nicolau é uma peça de boa feitura, que honra a tradição dos prateiros de Guimarães. A haste é de prata lisa, constituída por quatro segmentos de secção circular encaixados, unidos por anéis moldurados. A crossa espiralada é decorada com folhagem, sobre fundo fosco gravado a buril. As folhas do extradorso são recortadas e destacadas, e a extremidade interior abre-se num florão de latão dourado.

São claramente visíveis as marcas de ourives ( Vidal e Almeida, nQ 2711 ) e do contraste Zeferino Augusto César ( Vidal e Almeida nQ 214 ). O inventário de 30 de Junho de 1862 contem o seguinte item : "Hum Báculo de prata, lavrada que peza oito marcos e quatro onças que valle a quantia de 68$000"(126).

A Irmandade de S.Nicolau conta mais de três séculos de existência, vividos no seio da comunidade vimaranense. Festas e lutas, rufar de tambor e passos cadenciados de procissões, preces e brandões de cera, reuniões convocadas a toque de campana, actos administrativos, questiúnculas, gestão de bens, encomendas a artífices, livros escritos com vagar, para que conste ...

Parte do património material da Irmandade - memória desse passado vivido - desapareceu com os tempos.

Mas a Irmandade permanece, com os seus Estatutos renovados. E se parte do seu património se perdeu, mais uma razão para que se cuide do que conseguiu sobreviver.

Dr.ª Manuela de Alcântara Santos
Directora do Museu de Alberto Sampaio

Em 1982, na 22ª Assembleia do 29 de Novembro da AAELG, na sua Sede Social, “Torre dos Almadas” com a seguinte Mesa:
Presidente - Albertino Faria Martins
Primeiro-Secretário - José Luís da Silva Xavier Fernandes
Segundo-Secretário - António Augusto Alves Monteiro
"O Eng. José Maria Gomes Alves sugeriu e comprometeu-se pessoalmente no ressurgimento da Irmandade de S. Nicolau e ao restauro da sua Capela."



 

Contato da Irmandade: irmandadesaonicolau@gmail.com

A Irmandade de S.Nicolau no facebook

 

Irmandade de S. Nicolau – Boletim para admissão de irmãos

         

Irmandade de S. Nicolau – Boletim para admissão de irmãos

desenvolvimento 1000 Empresas