Ruínas de Velho muro,
Mas qu'remos de braço dado
Ir ensinar o futuro”.
Pela boquinha da noite de 29 de Novembro de 1895 começaram a aparecer na “Fraga do Cano”, vindos em grande número pela desaparecida rua de Santa Cruz, os estudantes externos do velho Seminário-Liceu, que para aquela afamada taverna haviam marcada reunião magna.
Abancados às compridas mesas que serviam os lavradores que aos sábados vinham feirar os seus gados, banquetearam-se com um rico caldo verde, onde nadava a tora de presunto, seguindo-se-lhe uma opípara rojoada a que não faltava o fígado, a tripa farinheira e os grelinhos embebedados em azeite do fino, do Padre de S. Miguel, terminando com umas papas de sarrabulho de comer e morrer por mais e umas travessas de aletria, amarelinhas e brilhantes, graças a uns pozinhos comprados no droguista, já que os ovos estavam pela hora da morte, dada a vizinhança do Natal. E tudo isto regado com um verde tinto de se lhe tirar o chapéu, que muito ajudava à digestão de tão pesada como abundante comezaina.
Terminada esta, muniram-se os circunstantes, que já então envergavam jalecos e coletes e se cobriam com o barrete verde e vermelho do lavrador minhoto, das baquetas e maçanetas consoante as “caixas” e “zabumbas” que lhes competissem e trataram de completar o cortejo, já em organização sob a carvalha do Cano: à frente, o carro de Minerva, deusa da Sabedoria, logo seguida do numeroso grupo dos “Zés Pereiras”, atroando os ares com o seu cadenciado zabumbar; seguiam-se muitas dezenas de juntas de gado, que puxavam o pinheiro mais alto e mais aprumado que as luxuriantes matas de Aldão ha viam produzido; a fechar, a música dos “Aguças”, que, em tanto arruído, mal fazia ouvir os acordes do Hino de S. Nicolau.
Sempre entre compactas alas de povo, desceu o cortejo a tortuosa e íngreme rua dos Palheiros, percorreu a rua de Santo António, atravessou o Jardim do Toural e o Terreiro de S. Francisco e, metendo pelas ruas de S. Dâmaso e Traz-o-Muro, desembocou no Campo da Feira, onde seria erguido o «pinheiro gigante, anunciando ao mundo a Festa do Estudante”.
Entretanto, a malta percorria as ruas da cidade rufando em frente de associações e hotéis, até que iças sem nos seus mastros as respetivas bandeiras em honra à Festa Nicolina, que acordava de uma hibernação de doze anos para continuar pelos séculos em fora a tradição que de longos séculos promanava.
E a Festa continuou até final: Magusto e Posses em 4 de Dezembro, cortejo e Pregão no dia 5 e Maçãzinhas e Danças em 6, dia do patrono S. Nicolau, sem esquecer em toda a semana as madrugadas à capelinha da Senhora da Conceição para abrilhantar com o rufar dos seus tambores as novenas rituais. E toca de estugar o passo porque as aulas abriam às 8 e os Srs. Cónegos da Insigne e Real Colegiada não perdoavam faltas por quererem manter os seus créditos, sempre confirmados aliás, de constituírem o corpo docente mais culto do ensino secundário de então.
1920! Vinte e cinco anos são passados sobre a restauração das Festas Nicolinas e há que não deixar passar em branco a efeméride.
E não se deixou! “Os Velhos Nicolinos” juntaram-se aos novos, engrossando a “orquestra” infernal dos zabumbas na entrada triunfal do Pinheiro e tomando parte nos restantes números do Estatuto. Além disso, realizaram no velho D. Afonso Henriques um sarau, que teve de ser repetido tal foi o pedido de bilhetes. Nele tomaram parte dezenas de “Velhos”. “A Ceia” do Padre Roriz, as “Danças dos Velhos” e outros números enchiam o pro grama. As senhoras, de cabelo empoado, lançavam para o palco braçadas de flores, que agradecidas com madrigais à moda antiga. Radiantes os mais Velhos de nós todos, Álvaro Casimiro, Jerónimo Sampaio, Carlos Abreu, Padre Alfredo Correia, Dr. Alberto Martins Fernandes, João de Campos, António Pádua e tantos, tantos outros andavam numa roda viva.
1945! Bodas de oiro. Cinquenta anos a contar da Restauração. Nova celebração, que em nada ficou a de ver à anterior : ceia no velho liceu, participação nas Festas e novo sarau, já no Teatro Jordão, artisticamente engalanado; nova repetição, para satisfazer pedidos; muita alegria, muita efusão. Doce saudade! Amarga saudade: Delfim de Guimarães, Fernando Lindoso, Matos Chaves, António Costa, Torcato Simões e sei lá mais quanto.
Mas desta festa mais alguma coisa ficou: uma vintena de contos sobejou no final. Com eles se compraram obrigações do Estado, de que anualmente se entregava uma ao aluno mais distinto do Liceu. E os anos foram correndo, nunca esquecendo aos “Velhos” a ceia tradicional que passou a ser cada vez com maior número.
E assim chegamos ao ano de 1960* e, com ele, à última obrigação. Foi então que alguém se lembrou de propor a ceia desse ano a criação duma coletividade com personalidade jurídica, que congregasse todos os antigos alunos do nosso velho Liceu. Aprovada a proposta, logo se nomeou comissão para proceder às necessárias diligências que concretizassem uma ideia que andava no subconsciente de todos: A Associação dos Antigos Estudantes do Liceu de Guimarães, que viu os seus Estatutos aprovados por despacho ministerial de 17 de Julho de 1961. “O que não foi” criou corpo porque alma já a tinha. E há muito!
Conhecida a existência da nova coletividade, acorreram as adesões de toda a parte, de todas as classes, de todas as profissões: Purpurados da mais alta estirpe, Magistrados da mais elevada hierarquia, Ministros e Diplomatas, Professores e Jornalistas, Engenheiros, Médicos e Advogados, Comerciantes e Industriais, Lavradores, Funcionários, Empregados no comércio...uma multidão heterogénea que se amalgamou numa designação única: a de “Velho Nicolino”!
Obedecendo às prescrições dos Estatutos, a Associação, que tem a sua sede no Castelo dos Almadas, graciosamente cedido pela vereação da presidência do «Velho Nicolino» Eng.º João Mendes Ribeiro, auxilia os alunos do Liceu, “Velhos” de amanhã, não só colaborando com eles na organização da festa tradicional, como também auxiliando os de menos possibilidades, pagando propinas, fornecendo livros didáticos, facultando refeições na respetiva Cantina, etc., etc. Tem um Fundo permanente e inalienável, que ronda a centena de contos, cujo rendimento se destina à concessão de prémios aos mais distintos.
Pertenceu a iniciativa ao “Velho Nicolino” Nuno Simões, que abriu a subscrição com avultado donativo, permitindo a imediata instituição de três prémios preiteando a memória de venerandos mestres: Cónegos Gonçalves Sanches e José Maria Gomes e Prof. José de Pina.
Seja dito que o Dr. Nuno Simões — e não estar em erro — foi o aluno mais classificado de sempre revelando desde moço o estadista, o jurisconsulto jornalista que viria a ser, hoje conhecido de quantos falam a língua portuguesa. Está em aberto a consagração que a Associação em tempos projetara mas que a sua saúde não permitiu concretizar. Oxalá que, por todas as razões ela possa ter lugar dentro do ciclo das comemorações em curso.
1970! Bodas de diamante! 75 anos ininterruptos de Festa Nicolina. E desta vez, como é óbvio, cabe à Associação o encargo de os celebrar condignamente. Por compreensível e louvável escrúpulo, limitou-se a direção por agora, a preencher o primeiro dia das comemorações com o programa já distribuído, uma vez que tal dia coincide com o último do seu mandato. Sei, no entanto, que está nas suas intenções, se for reeleita, ou sugerir, se não for, erguer à altura do evento essa celebração, alargando-a até à Festa de Despedida aos Finalistas, que também já criou raízes promissoras.
Eis, a traços largos “o que é” a Associação. E “o que poderá ser"?
Aquilo que nós quisermos, começando por alargar ainda mais a massa associativa, tornando a Associação conhecida de muitos que ainda a não conhecem, dirigindo-se os mais velhos aos seus condiscípulos conterrâneos interessando os mais novos a inscreverem-se se ainda o não fizeram, pois só assim, com a colaboração de todos, se poderá fazer obra válida.
Mantenhamos o culto do passado sem esquecer as necessidades do futuro. Tenhamos sempre em mente a signa de Bráulio Caldas quando cantou nas sempre jovens “Danças dos Velhos”:
“Pertencemos ao passado,
Ruínas de Velho muro,
Mas qu'remos de braço dado
Ir ensinar o futuro”.
António Faria Martins
Nota: *O ano não está certo. A ideia foi apresentada em 1959, 29 de Novembro, no Jordão (jantar de confraternização dos "velhos"), onde: "o Sr. Abílio Gouveia leu diversa correspondência recebida, destacando uma carta do Sr. Faria Martins, na qual sugeria para que fosse criada a Agremiação dos Velhos Nicolinos. "O curioso é que quem se enganou na data é "alguém se lembrou de propor" a coisa, ou seja, o próprio Faria Martins...