No nosso tempo... Meu caro Adelino Jorge
"Os Velhos" de 1945
No nosso tempo... Meu caro Adelino Jorge No nosso tempo...
Meu caro Adelino Jorge
HÁ dias, andámos os dois a passear aí no largo do Toural, onde foi, no
nosso tempo, o Jardim de Guimarães. Talvez ainda as pedras da calçada
nos transmitam as recordações das passadas que ali demos durante os
concertos da saudosa Banda do 20, do mestre Ramos e de outros que já lá
vão.
E foi precisamente num ambiente de saudade que recordámos as festas do
S. Nicolau, que tu e outros entu¬siastas, e até eu, que nunca nelas
figurei, querem agora comemorar no seu cinquentenário.
Foi também sobre o tema de que no nosso tempo tudo se passava com mais
entusiasmo, com mais calor, com mais alegria e até com maior compreensão
dos outros, dos que nos assistiram e aplaudiram.
Assim foi realmente para nós, e para os que desse tempo têm tantas
saudades como as que nos enchem o coração, e bem me lembro da desdenhosa
atenção com que ouvíamos o relato das aventuras dos que, no nosso
tempo, já eram de outro tempo.
Como poderemos nós arrancar deste corpo, já inclinado para a velhice, a
carga dos anos que o alquebrou, o enrugou e ressequiu, e o transformou
numa ruína?
Como dar cor a estes cabelos brancos (para isso ainda há remédio, mas,
infelizmente, só... para isso), brilho a estes olhos envidraçados e
mortiços, sangue a estes lábios descorados, em que um madrigal é quase
um insulto, lisura a estas faces que espalham a tristeza no meio da
gente nova?
Como endireitar o tronco já vergado e torcido e desajeitado e dar
músculo e fibra a estes braços cansados de labutar e combater nesta dura
batalha, e agilidade e resistência às pernas que nos arrastam
cansadamente neste trágico caminhar pela Vida?
Ai, meu caro Adelino, tudo isso passou, e passou irremediavelmente, e
no amargo significado do que não pode voltar e do que não tem remédio,
está toda a dor que nos aperta o coração!
Queremos forçar o Destino, ter a ilusão de que o passado voltou , uns
momentos de saudável alegria emparceirar ao lado dos novos para
solenizarmos o S.Nicolau sob o mando do incorrigível Sampaio e do nosso
carinhoso Mestre Pina?
Seja assim, mas vê lá, não te enganes, que os sorrisos os olhos
brilhantes as palmas, as palpitações de coração e as ânsias de tudo ver,
não são para nós por muito duro que casquemos nos zabumbas, é tudo para
os filhos e netos dos que agora lhes vão dar uns restos do seu velho
entusiasmo.
E era afinal só isso o que nós dantes, no nosso tempo, procurávamos, e
talvez haja na multidão quem melancolicamente, e com saudade, diga— eram
estes os rapazes do nosso tempo — e talvez seja essa a esperança que
nos guia.
Pois bem, lá me terás para a ceia, para o Pinheiro e para o Sarau,
pronto a pôr as barbas brancas (para quê?) e a figurar onde a minha
velhice possa ser útil à Comissão.
Por último recordo-te o que combinámos juntarmo-nos quatro, dos velhos,
para alugarmos um bombo, não por mera economia, mas para nos
revezarmos, porque, concordamos, no fim de cinco minutos estamos
arrasados, e não poderemos, como outrora o Brito e o Álvaro Casimiro,
meter-lhe os tampos dentro à segunda ou terceira mócada.
E para cumprirmos essa velha praxe, vê lá tu, somos precisos quatro - tu, o Fernando, o Abel e este teu ve¬lho amigo.
Jugueiros, 10-XI-1945. A. DE QUADROS FLORES.