Arquivo: Pregão de 1938

O Pregão de S. Nicolau [Impresso]/Delfim de Guimarães.-Guimarães:[CFN], 1938 (imp. Escola Tip. das Oficinas de S.José).- 1] f. desdobrável; 25x34 cm. Impresso s/ cartão branco a dourado e preto.

Recitado por Mário da Silva Mendes Guimarães
   
Em 1938, o pregão voltou a ser escrito por Delfim de Guimarães. Quem o leu foi o estudante do 6.º ano do Liceu Mário da Silva Mendes Guimarães, embora, aparentemente, estivesse para ser lido por Augusto Dias de Castro. É dedicado ao poeta Arnaldo Pereira, autor dos dois primeiros pregões do século XX. A principal novidade deste pregão é a de ser o primeiro que saiu impresso com a menção de “visado pela Comissão de Censura”.


À memória do talentoso
Poeta Vimaranense
ARNALDO PEREIRA

O PREGÃO DE S. NICOLAU
Recitado pelo sextanista
Mário da Silva Mendes Guimarães

Com Versos da minha alma eu volto a saudar-te
Embora sem fulgor e sem engenho e vida,
Ó Palas imortal da Sapiência e Arte,
Ó minha deusa amada e sempre estremecida.

Com versos da minha alma eu volto, ó Mocidade,
Até junto de vós, desfeito em pranto e ais,
Tão vencido de dor, tão cheio de saudade
Do tempo que fugiu e que não volta mais.

Com versos da minha alma este Pregão componho
E humilde o dedico — a derradeira palma —
A um Poeta de raça e lírico tristonho,
Que entre ferros chorou as “Lágrimas da Alma”.

Ao que escreveu outrora os Bandos cintilantes
De inspiração suprema e tecedura bela,
Enchendo de grandeza a Festa de Estudantes,
Deixando em cada estrofe o brilho duma estrela.

Ao que não tem no Berço um busto, um monumento,
O nome numa rua, ao alto dum cunhal...
Ao Arnaldo que foi tão rico de talento
E tão pobre morreu num catre de Hospital.

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As nossos saudações, bem alto e com ardor,
Erguemo-las, daqui, aos Professores queridos
Daqui, nosso respeito ao lídimo Reitor
E a eterna saudade aos Mestres falecidos.
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O amor de João Franco à nossa Terra Amada!!
Como a encheu de ternura e íntimos desvelos!
Do Restauro nos resta: a só Colegiada!
E uma relíquia só: Alberto Vasconcelos!
*
*      *
Caravanas de Encanto, Artistas da Beleza,
Nesta Araduca nobre assentam arraiais:
Nas telas, seus pincéis, revivem a grandeza
De nichos seculares, de templos ancestrais.

O típico, o motivo, o friso e o postigo,
Fonte que canta a linfa em ânforas de barro,
A criancita nua, o trapo do mendigo,
O marulhar da Dor, da Graça, do Bizarro.

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— E quantas Obras de Arte os sonhadoras pintaram!
Caravanas de Encanto, Artistas da Beleza,
Com telas magistrais, em sonhos, abalaram
Do Berço de luar da Terra Portuguesa. —
*
*      *
Há coisas que a nossa alma a olhá-las não se cansa:
O Restauro assombroso — a Arte que ali brilha—
Do Palácio ancestral dos Duques de Bragança,
Que é hoje em nossa terra um sol de maravilha!

Alguém que não se exibe, anónimo, encoberto,
Com seus olhos quis ver, palpar com sua mão
As pedras do Restauro, e tudo fez de perto,
Sentindo ali erguer-se a alma da Nação.

... Talvez, já muito longe, o Vulto Extraordinário,
Pensasse (ao recordar algum salão do Paço)
Nas comemorações do Duplo Centenário
Para dar-lhe o seu início em tão austero espaço.
*
*      *
Eu não vos clamo, Euterpe, Erato, Melpomene,
Calíope e Polínia, e o Monte do Parnaso
Eu não tento escalar, mas quero audaz, solene,
Neste Sonho da Vida — embora liso e raso —

Onde falha o donaire, o riso alto de Tália,
Que a minha bossa ascenda à luz da Poesia,
Que esta minha alma beba a água de Castália
E meu estro se expanda em halos de Alegria.

Quero espargir meu canto em verso harmonioso,
Erguer de Guimarães os Feitos Hodiernos,
Porque os Remotos são num monte volumoso
Arrumados no fundo horrendo dos Avernos...

Cessem dos charlatães e línguas ruins de sogras,
Das quentes a vapor e guinchos de garganta,
Os seus falsos pregões de graxas e de drogas,
Que este Pregão mais alto, ao Povo, se alevanta...
Já a grei se esqueceu da Ponte sem o Rio,
Sem Bispo aquela Sé, Palácio sem um Rei,
Sem ter a Relação, comida de bafio,
Um Desembargador para julgar de Lei...

E fica boquiaberta, atónita, embaçada,
Perante aquele Arrôjo enorme e singular!..,
Um Homem! pois então! de têmpera afamada,
Daquela que não torce... e de jamais quebrar!...

No vasto azul do céu há asas de aviões...
É avião que desce?... Aviador que segue?...
Talvez que seja isto: uns Vôos de Ilusões
E o Monte de Azurém a campo nunca chegue...

Enfeita-se a cidade em montras de bom gosto
E já deitou, no centro, abaixo um pardieiro…
D. Afonso virou de lado o brônzeo rosto
E ledo agradeceu — Bem haja, Vinagreiro

Atirem à entulheira a célebre carroça
E venha em seu lugar um carro aparatoso…
Acabem duma vez com tanto riso e troça,
Que o... burro é um pobre burro e nunca foi culposo...

O sino de S. Pedro, agora, é formidável!
Ao seu bronze o relógio imprima voz sentida
E canta, fraccionado, o hino memorável:
— “Ó Guimarães, o teu Progresso, a tua Vida”...

São Domingos deitou abaixo os tapamentos,
Suas pedras de encanto ergueu nos seus lugares…
Há luz na sua Nave, ardor, deslumbramentos,
Mais luz nos seus Vitrais, mais luz nos seus Altares...

Guimarães acordou do sono-prostração...
A Praça do Mercado embelezou-a ao cimo.
Já tem um Redondel para o Núncio e para o Simão,
Tem água ali no Selho, a serpear, que é um mimo…

Emana... lá do fundo, essência inebriante,
Mas nem sequer protesta o velho Trovador...
No cabo do Jardim, seu urinol galante
Que bem que fica ali!... É um biscuit de amor!...

Já tem uma Estação moderna e arejada
Onde o comboio chega a hora sempre exacta…
E tem uma Avenida, há anos começada,
Chamada (aqui para nós) a Avenida-Empata…

Agora vai romper a Rua Gil Vicente,
Mata-Diabos vai também… na correria.
Sei lá quem mais irá!... Um dia acorda a gente
Com tanto rompimento às portas da Atouguia…

Guimarães retirou da cena os sem abrigo
Que meses exibiu no D. Afonso velho...
E traz em construção um sólido jazigo
Para sepultar com gala os Paços do Concelho…

De S. Francisco o largo, é certo, é mesmo um facto,
O seu alindamento... E muito adiantado
É o Parque do Castelo... (Agora… aí vai gato:)
No Matadouro Novo aquilo sim! que gado!...

Tem um onze que diz reter o campeonato,
Embora não se sinta, em corpo, mais robusto...
Sofreu a deserção dum meco muito ingrato,
Que tanto desgostou o velho Alberto Augusto.

Mas Guimarães não tem Estátua do seu Gil,
Nem tem um Monumento aos Mortos! tantos, tantos
Que tombaram na Guerra! — A dor Nove de Abril,
Que esta Pátria de Heróis amarfanhou de prantos.

Não tem elevador que à Penha nos transporte,
Seu velho Regimento o não terá jamais...
Até os próprios Reis mandou à forca, à morte,
Os cinerou em reis de arengas teatrais...
*
*      *
Transfigurado o Nina, a gente chega à ver,
Quando os seus braços ergue e rege o Orfeão
Um homem a subir, aos poucos a crescer,
Tornar-se gigantesco o corpo dum meão!

Rendemos largo ajuste à nobre Autoridade,
Que administra, à altura, o povo do concelho.
Abrimos nosso peito em brechas de amizade
Para lá guardar Sampaio, o avôzinho, o Velho!

.   .   .   .   .   .   .   .   .   .   .   .   .   .   .   .   .   .   .   .   .   .   .

Ao velhinho “Comércio” e ao “Notícias” moço,
Do Berço os dois jornais de viva simpatia,
Num grande abraço Vai o cumprimento nosso,
Cumprimento leal de toda a Academia.
*
*      *
Marçanos sem gravata e vós, caixeiros chiques,
Do Matos, do Martins, do Santos, do Pimenta!
Não tem a nossa Festa a vossa Marcha triques,
Mas tem um chafariz que esguicha... e que arrefenta…

Ó Magas do pedal — pedal que canta, arrulha.
Perdido entre setins e chitas tão guapas.,.
Ó chinos do dedal: metei bem fundo a agulha,
Ajeitai os rasgões das nossas negras capas…

Connosco precisais, ariscas tricaninhas,
Dizer o b-a-ba do livro dos amores...
E mestras ficareis de letras... miudinhas,
Ensinando-as, depois, melhor que os professores…
*
*      *
Senhoras: numa quadra ou duas, quando belas,
Quando o buril do Sonho as rasga em Versos de Oiro,
Há Carmes que de luz ofuscam as estrelas
E valem sempre mais que as jóias dum tesoiro.

De vossos olhos basta a Inspiração Divina
Para que uma quadra atinja o Céu das Perfeições
Nesta Beleza ingente: a graça Nicolina,
— Corações a cantar, cá dentro, aos corações.

As maçãzinhas de oiro e carmesim berrante,
Que o bico duma lança esplendoroso entouca,
Só as sabe ofertar um beijo de estudante
Que espera sempre o beijo ardente duma boca.

As vossas finas mãos, patrícias, transparentes,
À boca hão-de levar os pomos tentadores.
E sentireis, aí, nas pétalas dos dentes,
Um mel delicioso a rescender amores.
*
*      *
Soldados de Minerva: arriba os vossos bombos...
Que à voz do meu comando em forma tudo fique...!
Aqui nunca houve medo a furos... nem a rombos,
Nem forças colossais das Quatro de Munique...

Para frente é que é o caminho... A China há-de tremer,
Pedir-nos o Japão um armistício e... chagas...
O Universo inteiro havemos de vencer,
Embasbacar o Franco e assombrar Miajas!

Dezembro de 1938.
Delfim de Guimarães.

VISADO PELA COMISSÃO DE CENSURA

Transcrição e comentários de António Amaro das Neves
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