Arquivo: Pregão de 1919

Bando Escolástico [Impresso] / Jerónimo de Almeida.-Guimarães: [CFN], 1919 (imp. Pap. e Tip. Minerva Vimaranense).- [1] f.; 38x24 cm. Impresso s/ papel branco.-Dois exemplares com dedicatória da Comissão, sendo um deles em cartolina.

Recitado por João Baptista Gomes Seixas

Em 1918, a agonia que as festas dos estudantes a Guimarães atravessavam desde a implantação da República parecia ter entrado na fase terminal. Nesse ano, não se festejou S. Nicolau. No jornal Gil Vicente, lamentava-se a morte das velhas festas:

"Morreu S. Nicolau.
Vitimou-o a pneumónica!
Foi bem ou foi mal?
Talvez fosse um bem, para não presenciarmos, mais uma vez, a triste farrapada dos últimos anos…
Todavia não felicitamos quem lhe cavou a tumba, mas enviamos sentidos pêsames aos seus verdadeiros doridos, ou sejam aqueles que, há vinte e três anos, pela mão do saudoso Bráulio Caldas, entusiasmadamente e à custa do seu rico bolsinho, desceram:
“................... às entranhas da tumba,
Ressuscitando a festa a toques de zabumba!”
Morreu o S. Nicolau!
Com que mágoa o dizemos e que saudade imensa dos tempos que já lá vão!...
O tempora! O mores!"
Gil Vicente, ano 1.º, n.º 8, Guimarães, 8 de Dezembro de 1918.

No entanto, em 1919 viria a demonstração de que o anúncio da morte das Festas Nicolinas havia sido precipitado. Os estudantes voltaram a sair à rua com a sua alegria e os seus bombos. O pregão foi escrito por Jerónimo de Almeida e recitado pelo académico João Baptista Gomes Seixas. De notar que um velho “inimigo” das festas a S. Nicolau foi entretanto convertido: A. L. de Carvalho escreveu as danças deste ano.
O pregão deste ano ajuda-nos a perceber como ia Guimarães e como ia o Mundo por aqueles dias em que a Europa lambia as feridas de uma guerra que a deixou seriamente ferida.

BANDO ESCOLÁSTICO
Recitado por João Baptista Gomes Seixas
Em 5 de Dezembro de 1919
Dedicado ao velho entusiasta das festas Nicolinas, Jerónimo Sampaio, para que os rapazes de hoje evoquem o ardor e alegria da sua mocidade.

Enquanto em Guimarães houver um estudante
Que sinta o peito arfar de vida palpitante,
Há-de realizar-se a Nicolina festa
Embora exista ai quem diga que não presta;
Para assim espalhar, da fama, aos quatro ventos,
Ao clamor infernal dos nossos instrumentos,
Que na Pátria de Afonso, se os anais não mentem,
Há cérebros que pensam, corações que sentem.
Que nos importa a nós que tenha longa idade
Se lhe empresta vigor a nossa mocidade?!
Não são novas também, coradas e louçãs.
Cada ano que vem, essas lindas maçãs
Que espetadas na lança, ó formosas donzelas,
Vos vamos ofertar ao alto das janelas?...
A nossa festa é um riso alegre e descuidoso
Que aos lábios nos assoma em horas de repouso,
Espantando de nós essas tristezas lívidas
— E as tristezas (sabeis) nunca pagaram dívidas...
Não quer isto dizer que eu seja caloteiro,
Mas sinto um tal horror, há tempos, ao dinheiro,
Tanto nojo, meu Deus! que vejo-me obrigado
A andar completamente à lisa, depenado!
E se puxam por mim talvez que não resista
A dentro em pouco ser um puro bolchevista.
O caso está flagrante: a enorme carestia
Faz que a gente não traga nunca a escrita em dia,
São impostos e impostos sobre o rendimento,
Estando já de todo esgotado o orçamento.
Mas o País é rico: há fontes de receita
Que ainda virão a pôr muita bolsa direita...
Sucedem-se uns aos outros novos ministérios,
Todos querem mandar. O resto são mistérios...
Mas o caso do dia, o caso de espantalho
Foi o novo decreto — o horário do trabalho.
8 horas somente! ó vida reinadia!
Desde que ele saiu todos dormem de dia
Sem terem que fazer, havendo quem se afoite
A achar muito melhor o trabalhar de noite!...

Agora o nosso preito aos nobres Aliados:
Junto deles também os nossos bons soldados
Foram heroicamente expor o duro peito
Pela causa da Justiça e a causa do Direito.
Contra eles lutando era como um fantoche
O soldado alemão, esse horroroso boche.
Quando a Guerra acabou, declarado o armistício,
Correu de norte a sul, num medonho bulício,
Um doido frenesi de que não há memória,
Pela mais colossal e triunfal Vitória.
Depois de regressar o C. E. P. de França,
Seguiu pelo País o exército em folgança,
Levando atrás de si canhões e mais canhões!
Entre o ruido de tão valentes comoções
Ninguém se divertiu, porém, como as sopeiras
Que em bandos o cercavam, todas galhofeiras,
Só para desfrutar, desses belos heróis,
A fina galhardia...
                                      Algum tempo depois,
Sem que nada esquecer alguém fosse capaz,
Realizou-se em Paris a Conferência da Paz.
Veio Wilson ditar as bases do Tratado,
Ficando todo o mundo extático e assombrado
De tanta verborreia e tamanha eloquência.
Mas ao verem erguer-se, em plena conferência,
O Enviado Português, todos disseram “psiu!”
Falou, falou, falou... porém ninguém o ouviu!...
Portugal, Portugal, que situação tão crítica!...
. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .

Deixemo-nos, porém, de assuntos de política
E falemos de ti, ó linda Guimarães!
Como tu és formosa e que riquezas tens!
Quem nunca passeou pelos teus arredores,
Com certeza não viu ainda um ninho de amores.
Bem faz a Sociedade, aí, de Propaganda
Andando a espalhar sempre por toda a banda
Os meios de atrair os olhos do turismo.
Às vezes fico a olhar para essa Penha e cismo,
Em vez de se subir com um trabalho insano,
Se não era melhor ir lá de aeroplano
E à volta para cá, fazendo um vôo baixo,
Destravar o aparelho até cair abaixo...
Perde-se em ideais a nossa fantasia;
Guimarães! Guimarães! ah como eu queria
Ver-te sempre avançar na senda do progresso!
Quem gosta de luxar não faz questão de preço:
É por isso que tu já tens liceu Central,
Escolas Superiores e Aula Colonial,
Fazendo-me pasmar de, em tanta dissidência,
Haver ainda alguém a açambarcar ciência!
Só o que me amofina e causa até horror
É, em frente do Jardim, exalar-se um fedor
Do edifício a que tu o Telégrafo chamas,
De lá ir tanta gente expedir telegramas.
Não há rosa, porém, que não tenha seus picos:
Mas que fazem por ti, dizei-me, os novos-ricos?...

Tricaninhas, ó flores por quem eu ando grego
Tanta vez a pensar que tenho de ir ao Prego
Empenhar algum livro só para alcançar
O prémio sedutor de vos poder amar!
Dar-me ia por feliz — o amor e uma cabana,
Não há amor igual ao amor duma tricana.
Façamos um contrato e troco o estudo até
Para poder viver sempre de vós ao pé.
Tão doce e divertido, o génio mais tristonho
Basta ver-vos e julga que esta vida é um sonho;
Quer voar, quer fugir convosco para a lua,
E desperta por fim a passear na rua
Correndo atrás de vós... A graça da chinela
E do chale apertando a cinta estreita e bela!
Lembrais-me, ao perpassar, as leves andorinhas
Saltitando ligeiras, doidas cabecinhas!
Tendes frio?! Chegai-vos para a nossa capa
E agasalhai-vos bem... Ao amor ninguém escapa.
São cadeias que prendem com tão doce jeito
Que se acaso morresse junto ao vosso peito,
Num suave desmaio, esplêndido e profundo,
Não me importava até que fosse o fim do mundo,
Como dizem para aí!...

                                         Sinto, às vezes, meus olhos
Cansados de fitar esta vida de abrolhos,
E levanto-os até às regiões mais belas
Onde pairam, brilhando, as rútilas estrelas.
Em vós, Senhoras, vejo os astros deste céu,
A procurar-vos anda este pobre olhar meu,
E para vos achar oh que fadiga louca!
É preciso trazer o coração na boca,
Jurar-vos um amor apaixonado e eterno,
Oferecer-vos a vida e, com carinho terno,
Cercar de mil prazeres toda a vossa existência.
Sois como aquelas flores de rara consistência
Que para conservarem o perfume e a cor
Têm de ser tratadas com imenso amor,
Vendendo-se depois por preços fabulosos.
Para vos possuir os poetas orgulhosos
Em cada uma vêem a Laura de Petrarca;
E como quem, sonhando, o vulto amado abarca,
Do Poeta também seguindo o mesmo exemplo,
Na vossa esteira entram no interior dum templo,
Para que o seu amor ali comece e acabe...

Já vos macei demais e nada mais me cabe
Dizer-vos, só vos peço não me chamem mau
Por haver defendido a festa a Nicolau.
É nosso Protector! Ajuda-nos, ó Santo,
A suportar as dores deste mar de pranto!
Porém se tu julgares que somos uns ateus.
Abre, de par em par, as portas desses Céus,
E iremos todos lá para festejar-te um dia,
Levando em nossa alma um raio de alegria.
E ao ouvires do cortejo o eco atroador,
Também tu, Nicolau, hás-de tocar tambor!...
Jerónimo de Almeida

Transcrição e comentários de António Amaro das Neves
Publicado originalmente em http://araduca.blogspot.pt/
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António Amaro das Neves
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