Arquivo: Pregão de 1905
 
   
     
       
        |   | Pregão Escolástico [Impresso] / João de Meira .- Guimarães: [CFN],1905 (imp. Typ. Pires).- [1] f.: 45x30 cm. Impresso s/ papel branco. Dois exemplares, um tem com nota manuscrita e outro uma dedicatória de J. L. de Faria. 
 Recitado por Joaquim Firmino da Costa Azevedo
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O pregão de 1905 é o terceiro, e último, escrito por João de Meira. Foi recitado por Joaquim Firmino da Costa Azevedo, “académico do 5.º ano”. Não fôra a homenagem ao poeta Bráulio Caldas, falecido pouco antes (no dia 15 de Outubro de 1905), este pregão retoma o modelo dos textos intemporais, que poderiam ser lidos em qualquer ano. 
 
Por aqueles anos repetia-se uma ideia recorrente no que tocava às festas Nicolinas: a certeza da sua decadência e a proximidade do seu fim. Aos profetas da desgraça, João de Meira respondeu assim:
 
 
 
Enquanto em Guimarães houver um Estudante
 
Com força para tocar, com alma, num zabumba,
 
A Festa viverá, altiva e triunfante,
 
E ninguém poderá acompanhá-la à tumba!
 
 
 
O bando tinha um preâmbulo em verso, no qual o autor se despede “de vez” dos estudantes.
 
 
 
 
 
         Adeus
 
 
 
Rapazes, ando a dar a última enxadada
 
Na cova onde sepulto a minha mocidade,
 
Dentro em pouco está morta, a triste desgraçada,
 
E não deixa em minha alma um raio de saudade,
 
 
 
À falta de homens, já três vezes fui chamado
 
Para escrever, sem arte, os versos do Pregão;
 
E três vezes o fiz, sem metro, mal rimado,
 
E o que inda é bem pior, sensaborão!
 
 
 
E entre os nomes de luz de tanto ilustre poeta
 
Que escreveram para vós composições tão belas,
 
É o meu pobre nome uma mascarra preta
 
Que tombasse no Céu entre milhares de estrelas.
 
 
 
Despeço-me de vez, Rapazes, e ao fazê-lo
 
Só peço que me deis um pouco de alegria,
 
Pois tenho dentro da alma um triste pesadelo
 
E soam-me aos ouvidos gritos de agonia!
 
 
 
JOÃO DE MEIRA.
 
Guimarães
 
1.º de dezembro
 
de 905
 
 
 
 
 
Pregão Escolástico 
 
Recitado em 5 de Dezembro de 1905
 
PELO ACADÉMICO DO 3.º ANO
 
Joaquim Firmino da Costa Azevedo
 
 
 
No vasto azul do Céu existe uma janela
 
Cercada de festões de rosas e açucenas...
 
Os Anjos, muita vez, vêm debruçar se nela
 
Pendendo, com amor, a face pura e bela
 
Para o ruído vão das multidões terrenas!
 
Assomam, muita vez, ao místico balcão,
 
As mãos em cruz no peito, os lábios num sorriso,
 
Os Santos de semblante etereamente bom,
 
Que, havendo aqui deixado uns restos de afeição,
 
Têm saudades da Terra até no Paraíso!
 
E sempre neste dia a célica varanda,
 
Quer chova ou brilhe o sol, se abre de par em par;
 
E Nicolau, sozinho, um riso dela manda,
 
Um riso de alegria à terra linda e branda,
 
Que tanto e tanto o ama e o sabe festejar!
 
Mas hoje, quem puder, misteriosamente,
 
Fitar essa janela oculta para nós,
 
Verá a Nicolau, sereno e resplendente
 
E alguém, sobre o seu ombro, olhando tristemente
 
Como quem sofre e cala algum martírio atroz.
 
Quem é que até no Céu em amargura e dor.
 
Não deixa de afogar o seu destino mau
 
E tem à nossa Festa ainda tanto amor,
 
Que um momento abandona a Deus Nosso Senhor
 
Para nos vir olhar junto de Nicolau?
 
Quem é o Sonhador, esse Poeta agora,
 
Que outrém não pode ser, tendo o olhar que tem
 
Onde já brilha a luz da sempiterna Aurora,
 
Que à janela do Céu, vendo-nos hoje, chora
 
Em lágrimas que são as pérolas do Além?...
 
É o Bráulio, certamente, o artista consagrado,
 
Que a esta Festa emprestou uns vividos clarões,
 
Juntando ao entusiasmo alegre e descuidado
 
Da nossa Mocidade, o encanto delicado
 
E a graça musical dos seus melhores Pregões!
 
É o Bráulio, que vem cumprir o prometido
 
No último Pregão, que ele escreveu para nós,
 
De, mesmo após a Morte, e meio corrompido,
 
Inda nos vir falar, num grito, num gemido,
 
Que nos faça lembrar a sua triste voz.
 
E a Alma do Poeta, atravessando o Espaço,
 
Vem sobre nós pairar com placidez e calma,
 
Anda em torno de nós, cinge-nos num abraço,
 
Dá-nos maior alento, ampara-nos o braço,
 
E todos temos na Alma um pouco da sua Alma.
 
. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
 
E como fomos já tristes, com devoção,
 
Depor sobre um coval as rosas da Saudade,
 
Enchamos de alegria e luz o Coração,
 
Vamos folgar e rir cheios de animação,
 
Que a vida passa breve e é breve a Mocidade!
 
 
 
 
 
Caixeiros é forçoso o ir perdendo o pelo,
 
Deixar de encavacar com graças do Pregão!
 
Porque afinal de contas (não é mau dizê-lo)
 
Se vos zangais connosco é sempre sem razão!
 
Caixeiros, quanta vez, livres do pesadelo
 
Que é sempre para vós a estada do patrão,
 
Tricanas namorámos, sem sentir um zelo,
 
Vós de dentro e nós de fora do balcão!
 
E se em casos de amor que são os que ligeiros
 
Erguem entre os mortais as lutas desgraçadas
 
Nós nunca nos zangamos, ríspidos caixeiros,
 
Porquê zangar agora à conta de piadas?
 
Vá lá. Vamos fazer as pazes com um X
 
E nunca mais aqui se fala em chafariz!
 
 
 
— Raparigas, adeus!
 
                                      — Diga antes adeusinho,
 
Que é bem melhor que adeus porque é bem mais docinho!
 
— O Pinheiro lá está erguido com bem risco
 
E com enorme esforço, ali, em S. Francisco.
 
Podeis i-lo adorar, podeis até rezar lhe,
 
Mas quanto a pôr-lhe a mão...
 
                                                     — Lá isso nem tocar-lhe!
 
Vinde connosco à festa, à noite, pela treva,
 
Que a pândega é o melhor que a gente de cá leva.
 
Dizeis que não podeis?
 
                                         — Sim bacalhau.
 
                                                                         — Quem disse?
 
A questão é saber pregar a mentirice.
 
A mãe em tudo crê!...
 
                                          — Está bem, deixe ficar.
 
— Vinde que ninguém sabe!
 
                                                    — Ai não, que faz luar.
 
— É vir pela beirinha! Em noites desta Festa
 
Até o luar é bom, que é doce e que não cresta!
 
 
 
Senhoras! Eu bem sei que sou um orgulhoso,
 
Coberto de Soberba e Desvanecimento,
 
Em andar a supor que o vosso olhar radioso
 
Contempla a nossa Festa, ao menos um momento.
 
A Mocidade é assim; e a nossa Mocidade
 
Tem esta confiança, esplêndida e robusta,
 
Que para muitos é chamada uma vaidade,
 
E que é para mim uma virtude augusta.
 
Mas, Senhoras, se até o Sol que foi um Deus,
 
Quando sulca de luz a etérea vastidão,
 
Beija os Astros que vão girando pelos Céus,
 
Beija também a Flor e beija a Podridão.
 
Que muito, pois, que vós, lindas flores vermelhas,
 
Sobre nós demoreis os olhos tão leais,
 
Que sob a pura e ideal curva das sobrancelhas,
 
São como grandes Sóis sob Arcos-triunfais!
 
Que muito, pois, que vós façais desabrochar,
 
Crescer radiosamente em cada Coração
 
Ao influxo fatal do vosso doce olhar,
 
As Rosas do Amor e os Lírios da Paixão...
 
A Festa é para vós, e como vossa olhai-a,
 
Que se mais vos não dou é porque mais não posso.
 
A Vida é vossa já, Senhoras, aceitai-a...
 
Quereis o Coração?... Também, também é vosso!
 
 
 
Alguém anunciou que a Festa ia findar, 
 
Mas vós estais a ver como ela agora finda!
 
Em vez de envelhecer sente-se remoçar
 
E se ontem era nova, hoje é mais nova ainda!
 
Enquanto em Guimarães houver um Estudante
 
Com força para tocar, com alma, num zabumba,
 
A Festa viverá, altiva e triunfante,
 
E ninguém poderá acompanhá-la à tumba!
 
Avante, sócios meus, avante companheiros,
 
Deixai falar quem fala, é tudo palavrório,
 
Nicolau não atende a falas de caixeiros,
 
E atende inda pior paquetes de cartório!
 
Avante, sócios meus, segui esta receita,
 
E quando logo enfim o dia terminar,
 
Nem uma só baqueta há-de ficar direita,
 
Nem uma pele só fique por estourar!...
 
 João de Meira 
 
 
 
 
  Transcrição e comentários de António Amaro das Neves 
  
 
  Publicado originalmente em http://araduca.blogspot.pt/ 
  
 
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