Arquivo: Pregão de 1900
 
 
 
   
     
       
        |  | O S.Nicolau em Guimarães[Impresso]/Braulio Caldas. [Guimarães:CFN],1900 (imp.Typ.Silva Caldas).-[1]f.;44x28 cm.Impresso s/ papel branco.-Existe outro exemplar com margens cortadas. 
 Recitado por António de Pádua da Silva Cardoso
 
 
 
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Apesar da despedida anunciada no ano anterior, o último pregão do século XIX seria também o último escrito por Bráulio Caldas. Mas fora preciso convencer o poeta de Vizela a voltar a pegar na pena e na inspiração para dar o dito por não dito e voltar a escrever o bando de S. Nicolau. Quem conta a história é Domingos Ribeiro da Silva numa conferência que proferiu no dia 13 de Dezembro de 1920, no Teatro D. Afonso Henriques:
 
 
 
"Estamos em 1900, no fim do século 19, no fim: do grande século, no século das luzes, no fim do século das grandes conquistas na senda do progresso e do pensamento. Um cantor condigno era preciso para o bando escolástico. Onde encontrá-lo? Não era fácil. O Bráulio despedira-se… Mas que importa, se a sua alma sempre grande, está pronta a sacrifícios pelos rapazes? 
 
O Sampaio, o Pádua, o José Roriz e outros vão ao cenáculo de Vizela. O Caldas atende-os mais uma vez." 
 
 
 
O texto do pregão de 1900 é uma homenagem aos velhos e aos novos entusiastas das festas dos estudantes de Guimarães a S. Nicolau. É, novamente, antecedido por um poeta de despedida do poeta, desta vez “para sempre”. Para quem os lê, fica a ideia de que estes versos serão obra de um ancião, que se vai despedindo da vida, e não de um homem que ainda não chegara aos quarenta anos.
 
 
 
ÚLTIMA DESPEDIDA
 
PARA SEMPRE
 
 
 
Vá lá mais uma vez... ficando reprovado,
 
Repito mais um ano a esquálida sebenta
 
Assim me aconteceu, no tempo assinalado...
 
Da Lusa, que, no Quinto... uns certos afugenta...
 
 
 
Meteu-me nesta festa o demo do Sampaio!
 
E, para nunca mais, nem sei que mais observe...
 
Aos novos recorrei, versos e flores de Maio,
 
Os meus vão desfolhar — são rosas de Malherbe.
 
 
 
Os novos tem mais vida os versos mais encanto
 
Inspirações da Aurora e flores da Primavera,
 
Eu... vivo já no Outono — é riso feito pranto!
 
Castelo arruinado onde vegeta a hera!
 
 
 
Se depois de eu morrer lembrar-vos a maçada
 
Que seis anos me deste e que não pouco vale
 
Levai-me uma saudade, ao menos, desfolhada,
 
Meu Espírito evocai... porque... talvez vos fale.
 
 
 
BANDO ESCOLÁSTICO 
 
O S. NICOLAU EM GUIMARÃES
 
Recitado em 5 de Dezembro de 1900
 
Pelo estudante vimaranense aposentado em filosofia da cábula
 
ANTÓNIO DE PÁDUA DA SILVA CARDOSO
 
 
 
S. Majestade Celeste o S. Nicolau, atendendo a que é fim de século IXX [sic], em que há perdões para culpas e recompensas para virtudes, e que já decorreram seis anos desde que ressuscitadas foram as antiquíssimas e arqueológicas festas de culto profano que a nobre e afamada Academia Vimaranense de Filosofia-Lógica e Latim presta ao meu nome, julgando-me um pândego de outras eras, e, Considerando que me lisonjeia essa antiquíssima e original tradição da velha Araduca... 
 
Mando, que, pelo meu secretário e intérprete deste ano António Pádua, sejam louvados os seguintes meus fiéis estudantes de outrora...
 
Os velhos entusiastas: P. Veiga, Nicolau Felgueiras, Domingos do Menino de Ouro, António Carneiro, Abreu Vieira, António Chaves; Agostinho Ferra, P. Garcia, José de Freitas Carneiro, Joaquim Martins, João Barbosa, João Amaral, P. da Bornaria, P. Lima, P. Monteiro, P. Augusto da Assunção Costa, Jacinto Dias, dr. Andrade e P. Casimiro.
 
Os novos entusiastas: Albano Belino, Pedro Lobo, dr. António Basto, Alberto Margaride, José Pina, Ferreira da Paz, Domingos Rato, Jerónimo Rato, Fernando Lindoso, Jerónimo Sampaio, José Roriz, Rocha Lima, António Guimarães, João Campos, Francisco Queirós, Florêncio Lage, Acácio Oliveira, Álvaro Oliveira, António Infante, correspondente do Janeiro, toda a ilustrada imprensa de Guimarães e todos os mais cujos nomes presentes não tenho;
 
Perdoando as culpas, recompenso o mérito e a virtude da patriótica função.
 
Palácio Celeste, 5 de Dezembro de 1900.
 
 
 
Século da Luz... adeus... Poente... o sol fenece!..
 
Século Vinte surge... Aurora, resplandece...
 
Nasças tu, muito embora, em negra terça-feira
 
Hás-de ser o melhor... a era mais fagueira...
 
Na Paz e na Verdade, o século mais facundo!
 
O mais santo e feliz desde que o mundo é mundo!
 
 
 
A guerra! assassinato e roubo colectivos
 
Que a própria lei consagra... a História faz altivos.
 
Um dia há-de acabar... Nações — à penitência...
 
A luz do Evangelho!... ao Credo da ciência!...
 
Os Lesseps rasgarão os istmos das fronteiras,
 
O amor da Humanidade arvorará bandeiras,
 
Filhos de Carlos IX... abaixo o arcabuz,
 
A espada há-de partir-se humilde aos pés da Cruz-
 
. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
 
Kruger sintetiza a grande Humanidade
 
No amor a independência, à Pátria, à Liberdade
 
A velhíssima lenda espírita… enxameia!
 
Já fala dela Homero, o Tirésias na Odisseia.
 
E Virgílio na Eneida, a Bíblia em Israel,
 
Já Saul evocara a sombra a Samuel.
 
Almas do outro mundo... Ciências positivas...
 
E golpes de escapelo... em forças redivivas...
 
 
 
Silêncio que é melindre arrepiar as crenças,
 
Que enredam corações em espirais imensas…
 
E não é dado a nós os leigos nesta léria.
 
Investigar além das raias da matéria.
 
Dos astros para além... se lá é o outro mundo,
 
A Deus é que pertence assunto tão profundo.
 
. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
 
Se fosse verdadeiro o tal Espiritismo
 
Que saudação febril! que poemas de lirismo
 
Não haveria hoje ao ver junto de nós
 
As almas do outro mundo!... os mortos!... os avós
 
Desta festa senil, que, em todo o mundo, é virgem
 
Dizendo-nos então qual foi a sua origem.
 
 
 
Padres — Caldas — Abreu — Sargenta e o grande Mico
 
Espíritos gentis do Nicolau de outrora
 
Que riam, como ri no mês de Maio a Aurora
 
E davam à cidade, em gélido Dezembro
 
Risos de sol aos mil...
 
                                Com que saudade os lembro!
 
 
 
A mesa pé de galo, o carro destas flores,
 
Medium seria então, num tálamo de amores,
 
A mais nobre e gentil das damas da cidade
 
Que nesse tempo vira a flor da mocidade.
 
Foi proibido o jogo... e joga-se... decerto...
 
No silêncio da noite esconso... e no deserto...
 
Afinal que fazer?...
 
                               É um jogo a própria vida
 
No amor, na fortuna a Sorte é apetecida.
 
Loucura é proibir com ordem tão ufana
 
Um vício inerente à natureza humana.
 
O jogo é muito antigo é de era já primeva
 
Já mesmo o Pai Adão jogou com a Mãe Eva
 
Melhor é reformar o Código Penal,
 
Pagar contribuição; legalizar o Mal.
 
 
 
Tricanas... vosso amor é o S. Nicolauzinho,
 
O santo mais brejeiro, em Guimarães, no Minho,
 
O próprio S. João fica a perder de vista,
 
Nicolau é mais galo! é mais altiva crista!
 
Nascendo no outono, e próximo do inverno,
 
Dá-nos maior calor e tem amor mais terno.
 
Se ele agora soubesse o que por cá retumba
 
Descia lá do céu, vinha tocar zabumba
 
Formosas, louvai sempre a festa peregrina
 
Dai palmas, deitai flores à capa e à batina.
 
 
 
Há memórias que têm na História um monumento
 
Foi grandiosa a festa! altivo o pensamento!
 
Rasgara-se o Azul da Imortalidade
 
— A alma de Sarmento, em prantos de saudade,
 
Mandou cá, para a terra, e na consagração
 
Bênçãos e flores de alma à grande comissão
 
Que soube relembrar em hinos de louvor
 
O seu mais querido filho, o seu maior valor.
 
 
 
Senhoras — perdoai, é pobre o pensamento!
 
— Houve eclipse total do Sol, no firmamento.
 
Foi este ano o assombro! a ciência teve a glória!
 
Mas foi o vosso olhar a causa da vitória!
 
O Sol tem sempre horror aos astros seus rivais!...
 
Não foi a Lua a sombra. É vós que brilhais mais
 
A História vos saúda em ovação real,
 
Anjos de Guimarães, filhas de Portugal!
 
                               *
 
Companheiros do Estudo... Estrondo e da Pilhéria
 
Atendei-me a final…
 
                     Espírito e Matéria
 
Andam agora, em luta, a ver, se enfim, termina
 
A bombaria infrene, a guerra mais mofina
 
Que à nevrose se faz, à histeria... à idade,
 
Que desculpar não pode a louca mocidade!
 
Mas fim de século, agora, enfim tenham paciência
 
Hão-de as peles zurrar com toda a violência!
 
 
 
Cautela e atendei às regras musicais
 
Da orquestra do Zé Pereira e não toqueis de mais..,
 
A música anda em três... Regras que já vos conto:
 
Melodia, harmonia e mais o contraponto.
 
Para bem se executar — três coisas, e aposto:
 
A sensibilidade, a inteligência e o gosto.
 
E claves são as três de lá, de sol e dó,
 
Vozes são três também, três os compassos só.
 
Acidentes, bemol, bequadro e sustenido,
 
Instrumentos são três — e fique definido:
 
Há de sopro, de corda e há de percussão,
 
É destes que se faz a mais real função.
 
Meyerbeer, Mozart, Mendelssohn, Puccini
 
Schubert, Massenet, Beethoven, Rossini
 
E Chopin a chorar!... e Offenbach a rir,
 
Já ficam muito aquém... não podem resistir
 
No arranjo orquestral, no sublime aparato
 
À obra genial do maestrino Rato
 
Wagner é o autor da música científica
 
Mas o nosso Zé Pereira é música analítica,
 
Que faz todos os tons, todos os andamentos
 
O prestissimo, o presto, o largo e os mais lentos.
 
 
 
Vá... uma... duas... três… Andante e muito forte!
 
— Um hino festival que ponha medo à Morte!
 
Bráulio Caldas 
 
 
 
 
  Transcrição e comentários de António Amaro das Neves 
  
 
  Publicado originalmente em http://araduca.blogspot.pt/ 
  
 
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  António Amaro das Neves 
  
 
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