Arquivo: As Festas Nicolinas e a sua inevitável modernidade
Hélder Rocha na Posse da Torre dos Almadas em 2003
foto João Neves
As Festas Nicolinas têm a sua história feita, só a desconhecendo quem a quiser premeditadamente ignorar. Muitos foram felizmente aqueles que se dedicaram a procurar-lhe as origens, a desejar conhecer a sua evolução e a saber ainda como chegaram, com o mesmo interesse e a despertar equiparado entusiasmo, aos nossos dias. Devemos isto a João de Meira, Eduardo d'Almeida, Alberto Vieira Braga, João Lopes Faria e sobretudo, a A.L. de Carvalho que, com o seu livro "O S. Nicolau dos Estudantes", soube compilar quanto todos os outros inventariaram de um manancial de documentos coevos que ainda existem para garantir uma tradição que naturalmente se renova nos tempos decorrentes, talvez como nenhuma outra das múltiplas que enobrecem Guimarães.
Chegamos, contudo, àquele momento em que se nos aparenta ótimo para uma reflexão cuidada sobre aquilo a que podemos chamar temática nicolina, principalmente se quisermos considerar a onda de modernidade que procura inevitavelmente condicionar o culto pelo passado, destruindo a saudade naqueles que desejam as suas Festas Nicolinas perenes, pois acreditam que, na vida de toda a gente, o passado segura o presente para garantia do futuro.
Já há um ano fizermos aligeirada análise desta temática, tecendo considerações a que nos apetece voltar. Recordamos, então, que nesta terra os estudos (e os estudantes!) reportam aos primórdios da nacionalidade. Em 1190, Pedro Amarelo, primeiro D.Prior da Colegiada investiu Paio Galvão na dignidade de seu mestre-escola. E tanto Gaspar Estaco, nas "Velhas Antiguidades de Portugal", como o Padre Torcato de Azevedo, nas "Memórias Ressuscitadas da Antiga Guimarães" ou o Abade de Tagilde, em "Vimarenes Monumenta Histórica", testemunham que, desde o século XIII, nesta terra se ensinava a língua latina, o que precede no tempo as escolas de Coimbra e de Lisboa. Existiu mesmo também o ensino universitário no Convento da Costa, que foi instituído no remoto remado de D. João III.
Mas todos estes escolásticos vimaranenses, para João de Meira, eram devotos da Virgem Maria. Segundo efeméride conhecida, foi instalada a 13 de Novembro de 1594 a Irmandade de Nossa Senhora da Consolação, numa capela do Campo da Feira, em que os devotos eram unicamente estudantes. Somente bem mais tarde foi criada, em 1662, a Confraria de S. Nicolau, que passou para Irmandade, a qual ainda existe, em 1691.
Pode-se dizer, consequentemente, que os festejos do S. Nicolau dos Estudantes apareceram, mais ou menos, na época heroica da Restauração, para chegarem aos nossos dias, tendo como origem os chamados "dízimos de Urgeses", legado de um Cónego da Colegiada aos seus coreiros e estudantes e que mesmo depois do foro extinto, se repetem ainda com alegria para os novos e o matar saudades dos velhos.
Como foram tais (esteios no transcorrer dos séculos, conta-o A.L. de Carvalho com amplitude no livro atrás citado. Mas. concretamente, só deles se tem noticia mais certa lendo os estatutos da Associação Escolástica Vimaranense, que datam de 1873 e estão guardados nos arquivos da Sociedade Martins Sarmento.
Sabe-se, no entanto, que depois destes á a mesma Sociedade Martins Sarmento, em reunião da sua direção a 8 de Outubro de 1882, resolve fazer diligencias no sentido da criação de um instituto escolar para servir Guimarães, pedindo ao Governo. Antes funcionara o Colégio das Hortas, que abriu a 17 de Outubro de 1801 e estimulou também, segundo efeméride conhecida, ao reaparecimento dos festejos estudantis a 29 de Novembro do mesmo ano. Em 6 de Novembro de 1891, abre o Colégio de S. Dâmaso, no Convento da Costa, o que leva a novo restauro dos folguedos, em 1895, ano em que neles participam, entre outros, Alberto Cardoso de Menezes (Margaride), Fernando Afonso de Bourbon (Lindoso), José Luís de Pina, Luís Martins da Costa (Aldão), António Leite Castro e Jerónimo Sampaio, que recitou o Bando Escolástico, da autoria do poeta vizelense, Bráulio Caldas, todos com influência decisiva na existência atual das Nicolinas.
Repare-se que somente a 16 de Outubro de 1896 o Seminário anexo á Colegiada passa a Liceu Nacional, o que nos comprova que as Festas Nicolinas o antecederam amplamente e por isso, injustiçada a prioridade dada aos seus alunos na participação dos festejos, quando estamos nos tempos em que se multiplicam as escolas secundárias ria cidade e até no concelho. Já não se leciona para mais somente latim em qualquer delas, antes, em todas os seus programas estão orientados para o ensino unificado, que engloba tanto letras como ciências e nestas as chamadas tecnologias de ponta, obrigando deste modo os alunos a frequentar determinados estabelecimentos de ensino e não aqueles que desejariam.
Refletir sobre esta problemática compete à Associação dos Antigos Estudantes do Liceu de Guimarães, procurando em definitivo um entendimento generalizado que permita simultânea participação nos folguedos a quantos estudam em Guimarães e queiram ser Nicolinos. Há, agora, até um Polo Universitário local que poderia contribuir, com a sua colaboração, para uma desejável valorização do S. Nicolau dos Estudantes.
A modernidade obriga a inevitáveis alterações dos costumes e esta a hora própria de repensar, por isso, as nossas tradições nicolinas. Basta, para tanto, atender naquilo que contém os estatutos da Associação Escolástica Vimaranense, nomeadamente na parcela referente a participações de estudantes e daquelas pessoas que gozam do foro académico, considerando ainda no que tem sido as Festas Nicolinas há uns bons anos a esta parte.
Hélder Rocha
Livro das Danças de S.Nicolau de 1988
Da necessidade da evolução das tradições Nicolinas
Tínhamos alinhado um possível texto para esta brochura sobre as Danças/91, como nos fora pedido, quando a "explosão' que constituiu o cortejo do PINHEIRO deste ano nos aconselhou a mudar de assunto. Isto é, pareceu-nos lógico não perder a ocasião por tão óbvia que era, para salientar a renovada e evidente necessidade de abrir um amplo debate sobre as tradições nicolinas, ideia que mais duma vez temos referido.
Realmente, a multidão que inundou as artérias citadinas na noite de 29 de Novembro motiva meditação que não pode ser adiada. É que ela não tem qualquer funcionamento, antes que espelha a verdade atual do ensino em Guimarães e, por isso, se as Festas Nicolinas são dos novos estudantes, certo está que, definitivamente, o estatuto de 1873, pelo qual se regulamentou os mesmos, seja alterado.
Recordamos dele:
«Art.º 1° A Associação Escolástica Vimaranense é a reunião de todos os estudantes desta vila e de todas as pessoas que gozam do foro escolástico.
Art. 2.° São estudantes:
§ 1.° Os que frequentam qualquer aula pública de latim, filosofia, retórica, ou qualquer ciência;
§ 2.° Os que frequentam as mesmas faculdades com mestres particulares, fazendo certa a sua frequência por atestado do mesmo mestre.
Art. 3.° Gozam de foro escolástico:
§ 1.° Todos os eclesiásticos desta vila;
§ 2.° Todos os indivíduos nela residentes que tendo frequentado as aulas na Universidade, não estão compreendidos nas exceções do art. 1.°;
§ 3.° Todos aqueles que, suposto atualmente não frequentam, contudo igualmente não estão no caso das exclusões do art. L1°.
§ 1.° O que contrair matrimónio;
§ 2.° Os que assentarem praça nos corpos da primeira linha;
§ 3.° Os que abraçarem a profissão do comércio;
§ 4.° Os que seguirem qualquer profissão mecânica;
§ 5.° Os que servirem qualquer cargo público, civil ou militar;
§ 6.° Os que deixarem os estudos sem terem seis meses de frequência.
Art. 5.° O fim desta Associação é promover a continuação e luzimento dos
festejos do dia 6 de Dezembro,
e pugnar por todos os foros e regalias que os estudantes desta vila desfrutam desde tempos imemoriais».
Este documento está arquivado na Associação Martins Sarmento, o que lhe garante a idoneidade, não prevendo notícia de outro com igual temática.
Ora, como deixou de ser aplicado, preciso se torna que seja devidamente atualizado.
Com o regresso da Universidade, a unificação do ensino secundário, a multiplicação das escolas e dos cursos, é obrigatório "dar volta ao texto" um aproveitamento lógico do interesse que todos dão aos festejos Académicos Vimaranenses.
Cabe tomar a iniciativa à Associação dos Antigos Estudantes do Liceu de Guimarães, por imposição, dos seus estatutos. Deve fazê-lo sem complexos, ciente das realidades dos tempos presentes, consumando a iniciativa sugerida através de um "conclave" realisticamente aproveite o generalizado entusiasmo existente.
E deve fazê-lo também com toda a brevidade. Já a seguir às Nicolinas deste ano. Adiar será atrasar o que necessário se torna.
O mesmo que dizer que depois de amanhã será tarde de mais...
Eng.° HELDER ROCHA
Nicolino-mor
Danças de S.Nicolau 1991
A adolescência nicolina
As Festas Nicolinas têm sido, até hoje, as Festas dos Estudantes do Secundário Vimaranense. E devem continuar a sê-lo. É possível que haja alguma investigação histórica que permite concluir que elas seriam de todos os Estudante vimaranenses e não, apenas, dos do Secundário e tal seja o argumento mais utilizado para querer nelas englobar os actuais universitários do Pólo da U.M.
Porém, entregar as Nicolinas a uma organização que, fatalmente, seria liderada por universitários seria descaracterizar a Festa e transformá-la numa qualquer adaptação do “Enterro da Gata”, das “Latadas” de Coimbra ou de uma versão vimaranense da "Queima das Fitas". É certo que é importante integrar os universitários na vivência vimaranense. E como as Nicolinas, são um ponto alto dessa vivência vimaranense que tem, obrigatoriamente, de se abrir à Universidade e, de inclusive, passar a incluir na sua capacidade de definição da vida da Cidade as novas elites universitárias, a entrega das Nicolinas aos universitários poderia ser um contributo.
Parece-nos que não. Se a integração dos universitários é um objectivo, a destruição de uma tradição centenária e que formou sucessivas gerações de vimaranense é um preço demasiado alto.
Ser Nicolino é uma qualidade, um sentimento que há décadas se adquire em Guimarães entre os 12 e os 17 anos em plena vivência da adolescência.
O que representa para um jovem de 15 anos organizar uma Festa centenária que chama à rua toda uma Cidade e que, em tempos idos, chamava toda uma Região, não é uma vivência menor, daquelas que esquecem.
Passamos por essa experiência quando tínhamos 15/16 anos e incluímos Comissões das Festas em 1967 e 1968. Ela não foi, para nós, menor e menos significante que outras posteriores por que passamos quando integramos a Direcção da Ass. Académica de Coimbra nas crises académicas dos anos 70 ou funções na Aos Estudantes Engenharia no pós-25 de Abril. Foi diferente. Mas não foi menos responsável. A responsabilidade de gerir um Orçamento, a criatividade e o conhecimento da Vida da Cidade que permitiria as intervenções humorísticas marcantes nas Festas, o próprio sentimento de autonomia que para um jovem adolescente representa a liberdade de passar noites fora de casa ou de permissão para jantar fora, não são experiências menores. Ser Nicolino é um sentimento que, ainda, hoje é afirmado com certa honra, por toda uma geração na casa dos 40/50 anos que estudou no então Liceu de Guimarães. Muitos deles não eram vimaranenses, estavam Internos no Internato ou no Egas Moniz, eram de toda a Região de Basto, do Vale do Sousa ou do Vale do Ave, mas vinham para Guimarães estudar para o Secundário, nos tempos em que esta cidade, sem ostentar títulos, era centro real de uma importante área social, económica e populacional.
A Noite do Pinheiro tem sido, durante décadas, a reunião de muitos desses que estudaram em Guimarães e aqui vêem a 29 de Novembro de cada ano, afirmar a sua qualidade e rebeldia de Nicolino. Ser Nicolino na adolescência e não, apenas, na juventude universitária e liderar as Festas é algo que deve ser defendido para continuar. Guimarães é, hoje, uma Cidade com Intensa vivência adolescente. Os cinemas, os bares e outros locais vivem deles numa manifestação de vida que importa realçar. A Noite do Pinheiro da próxima Segunda-Feira vai ser, de novo, uma alegre noitadafolguedo, de liberdade para milhares de adolescentes estudantes que, hoje, é toda a população daquela faixa etária. O sentimento nicolina só se adquire após alguns anos de vivência juvenil vimaranense. É preciso percorrer toda a escada do secundário, viver anos as Festas para nos último anos assumir a sua organização.
Não é um universitário experimentado em festas escolares de outras paragem que chega a Guimarães para a U.M. que pode assumir o sentir nicolino e corporizar uma tradição vimaranense centenária. Por isso, neste jornal defensor da tradição vimaranense e da modernização, do obrigatório compromisso entre o passado, o presente e o futuro, a defesa das Nicolinas como Festas do Secundário Vimaranense é, para nós, uma saudável afirmação de principio.
RAÚL ROCHA
Povo de Guimarães
Texto revisto segundo o Acordo Ortográfico de 1990