Arquivo: Ensino Básico Em Guimarães

A Aula de Latim do Professor Venâncio

Pela Carta de Lei de 6 de Novembro de 1772 foi criado aquele que os historiadores da educação classificariam como o primeiro sistema de ensino público do Ocidente, distribuído por diferentes níveis de ensino, as primeiras letras à universidade. Esta reforma foi concebida sob orientação do Marquês de Pombal, tendo sido criada, conforme dispunha a lei, uma comissão de “corógrafos peritos”, cuja função seria a de estabelecer, com base na população de cada comarca, o número de mestres necessários à criação de centros nas vilas e cidades “nos quais os meninos, e estudantes das povoações circunvizinhas possam ir com facilidade instruir-se”. Estes mestres seriam remunerados pelo Estado, com as receitas de um novo imposto criado no mesmo ano, o subsídio literário. Incidia sobre o vinho, a aguardente, o vinagre e a carne, sendo arrecadado pelas Câmaras de cada Concelho.
Na sequência da reforma pombalina de 1772, foi criada em Guimarães, por carta régia de 7 de Janeiro de 1774, uma cadeira de latim, tendo sido designado como mestre titular o presbítero secular António Lobo de Sousa. A aula de latim de Guimarães funcionaria, com intermitências, até ao ano de 1869.
Os mestres que ocuparam esta cátedra, o de maior fama foram o último. Dava pelo nome de Francisco Pedro da Costa Rocha Viana, sendo conhecido como O Venâncio  (nome que tomou do seu pai). Era originário de Viana do Castelo. Foi provido no lugar por despacho do Ministério do Reino, em 13 de Julho de 1841. Instalado em Guimarães, passados três anos estava casado com Maria de Oliveira, filha do Salpicão, aliás, Manuel Francisco, o proprietário da estalagem da Praça da Oliveira onde estava instalado.
Até à sua aposentação, em 1869, o Venâncio ganhou fama de professor distinto por cuja escola passariam praticamente todos os jovens vimaranenses que prosseguiram estudos para além das primeiras letras. Os seus alunos eram conhecidos por obterem bons resultados nos exames de acesso aos liceus.
Além de mestre de gramática latina, o professor Venâncio era um cantor de reconhecido mérito, conservando até ao final dos seus dias a sua excelente voz de barítono, organista (tocava na Colegiada e em quase todas as outras igrejas da cidade), professor de piano (ensinou quase todas as damas da melhor sociedade que, em Guimarães, tocavam este instrumento). Era também um gastrónomo de primeira ordem.
Faleceu no dia 1 de Março de 1889, depois de prolongada doença. Sucedeu-lhe, como organista e cantor, o colector das Efemérides Vimaranenses, João Lopes de Faria, que havia sido seu aluno de Latim.
No tempo em que funcionou a aula de latim do professor Venâncio, as festas dos estudantes de Guimarães a S. Nicolau atravessaram uma fase particularmente brilhante. Como se escreveu no jornal Independente de 30 de Novembro de 1898, as festas a S. Nicolau,  quando o célebre Venâncio dirigia a famosa Aula de Latim, eram verdadeiramente esplêndidos e extraordinariamente concorridos de pessoas de fora da terra, curiosas de presenciarem as engraçadíssimas exibições, pitorescas danças, espirituosas cavalhadas, etc, etc, com que os estudantes comemoram o seu patrono. Com a aposentação do professor Venâncio,  em 1869, as festas entraram num declínio que parecia anunciar o seu fim, de que só recuperariam em 1895.
Um texto publicado em 1906 no jornal O Comércio de Guimarães recordava como era organizadas as festas nicolinas no tempo da aula do professor Venâncio. O ensaiador das danças dos jovens estudantes era então o entusiasta das festas José Ferreira Mendes de Abreu, o Fatinho. 
Aqui fica.

Festejos dos Estudantes da aula de latim de Guimarães denominados de S. Nicolau
No dia 6, era depois do magusto, em Santo Estêvão, a distribuição das maçãs e castanhas às damas de Guimarães, vindo os estudantes a cavalo, trazendo lanças enfeitadas com laços de seda, estes os mais pequenos, e a Comissão e outros estudantes mais taludos, em carros. Esta distribuição fazia-se pelo meio-dia, e terminava às duas horas da tarde.
Logo que chegavam ao Toural, a primeira coisa que faziam era dar meia volta em redor do pinheiro, como homenagem à deusa da Ciência.
Em seguida, dispersavam, indo todos ou quase todos ao Convento de Santa Clara, hoje seminário, levar as maçãs às freiras, que as recebiam, fazendo troca com doces que lhes enviavam das suas celas em cestinhas presas por fitas de cor.
Às duas horas da tarde saíam as danças: uma, a dos pequenos estudantes, outra, a dos grandes.
Muitos anos foi o Fatinho (uma santa criatura) o seu ensaiador.
Que paciência ele não tinha para isto!
Em antes uns oito dias ia ele e o Padre Vinhós ou o Padre Abreu à aula de latim, pedir ao Venâncio dispensa do estudo para as festas.
Mal entravam, isso sucedia quase sempre de tarde, todos os estudantes principiavam a fazer-lhes acenos, para que fossem enérgicos no pedido.
Venâncio, porém, imperturbável e frio, da sua cadeira, não prestava a menor atenção aos embaixadores.
Afinal, quando estes eram próximos da magistral cadeira, perguntava-lhes: que temos?
– Eles, a sorrir respondiam, pedem-se férias e já hoje se tem de fazer a escolha dos rapazes para as danças.
– Ainda é muito cedo, continue dizendo a lição, snr....
– Nada, nada. O feriado é hoje preciso, porque se têm de escolher roupas, etc.
– Isto há-de acabar um dia, dizia o Venâncio. Os rapazes precisam de estudar. Vá por este ano.
Tudo debandava para as varandas dos claustros de S. Francisco, fazendo uma algazarra medonha.
Vinhós, Padre Abreu e Fatinhos talhavam, e o S. Carlos, que era o director das obras do hospital, ou o pai dos snrs. Abreus, faziam a polícia de sarrafo em punho.
Berravam, ameaçavam, mas riam-se ao mesmo tempo.
Que saudades não sentimos por essa época de verdadeira e única felicidade!
Ser estudante de latim nesse tempo, parece que constituía a prerrogativa mais nobre dos rapazes de Guimarães.
Hoje, que há verdadeiros estudantes, e verdadeiros académicos, pois que passam por provas de exames, que os habilitam a um dia ocuparem na sociedade cargos importantes, vê-se ainda muita indiferença, senão até frieza.
Pois estes festejos, tradicionais e próprios de Guimarães, têm toda a razão de ser.
Diferentemente, sim, é certo, mas Coimbra, Lisboa e Porto, também um dia no ano presenciam as expansões académicas.

O Comércio de Guimarães, ano XIII, n.º 2117, 4 de Dezembro de 1906

Texto, transcrição e comentários de António Amaro das Neves
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