Arquivo: Programas do século XX
As Nicolinas na década de 60
Uma quantidade razoável de bibliografia dispersa - livros, pregões, textos de danças, programas e cartazes - constituem um valioso espólio e uma inesgotável fonte de consulta para os interessados na causa nicolina.
Por isso, dispensar-me-ei de testemunhar factos passados noutros tempos, para me remeter unicamente a um pequeno historial da minha vivência nicolina na década de 60, aquela em que frequentei o Liceu de Guimarães, tendo participado mais ou menos ativamente nos festejos dos estudantes da academia Vimaranense em honra do Santo Nicolau.
Ainda menino de bibe e pião, frequentava a escola primária e já as Nicolinas prendiam a minha atenção e a de toda a pequenada da minha idade ocupando lugar de destaque no povoamento do nosso imaginário infantil. As Festas dos estudantes, como o povo lhes chamava, já então mobilizavam todas as atenções, desde os seus preparativos, que começavam no início de Novembro, até ao ponto culminante do programa, que era, sem dúvida, o cortejo das maçãzinhas.
Por essa altura, recordo-me de ouvir os mais velhos ensinar à miudagem um arremedo de Pregão, cujas estrofes, em redondilha maior, passa a reproduzir com a maior fidelidade possível:
O Pregão de S. Coelho
Tem o rabo bem vermelho
A Carriça deu um grito
À porta de S. Francisco.
Toda a gente se espantou
Só a velha lá ficou
Embrulhada num sapato
A limpar o c... ao gato
Cresci, sobretudo em altura, e entrei no Liceu de Guimarães, acabado de inaugurar. Liceu novo, em folha, que sucedeu ao velho Liceu de Santa Clara. Estávamos no início da década de 60.
Passado 3 anos, já a geração que comigo deu entrada naquele estabelecimento de ensino se sentia imbuída de uma espécie de mística a que chamam o "espírito nicolino", e que ainda hoje continua sem dúvida.
O elemento aglutinador de quantos frequentam e frequentavam o alfobre de nicolinos que sempre foi o Liceu (hoje a Escola Secundária), desde o aprendiz no toque da caixa ou do bombo, até ao "velhinho" que já vai fazendo algum esforço para endireitar a espinha para olhar para a copa do pinheiro.
E já que no pinheiro, não posso deixar de referir aqui uma das piadas, inofensiva, das muitas que haviam escapado ao carimbo obrigatório da censura oficial, e que rezava assim:
Ó povo de Guimarães
Chora o teu fado daninho
O Gomes não te dá água
Lava a tua cara em vinho.
O Gomes, esclareço os mais novos, era o Engenheiro Gomes Alves, Diretor Delegado do S.M.A.S. e militante assíduo das listas nicolinas, que nos deixou há alguns anos.
Já então a falha de água se fazia sentir periodicamente na cidade, ao contrário do vinho, mesmo que fosse a martelo, o que também pode ser uma explicação para a escassez da água.
Tínhamos então à volta de quinze anos, e crescia em nós um secreto orgulho e invadia-nos uma indisfarçável vaidade quando, de maçanete em punho-afirmação de virilidade -desfilávamos pelas ruas do velho burgo, observados de perto pela feminina curiosidade das jovens colegas que mal encontrávamos ao longo do ano dentro dos muros do Liceu, tal era a segregação imposta.
Eram dias de sadia liberdade, de alegria folgazã. Tocava-se até romper o dia, no Pinheiro sobretudo, mas também no Pregão, número que consistia, tal como hoje, no recitar de versos carregados de ironia com temática variada, desde a exaltação das nicolinas virtudes, até à crítica social e política, sem esquecer as donzelas. Estrofes havia, que eram efetivamente autenticas declarações amorosas às donzelas de Guimarães.
Um dos autores de Pregões na década de 60 foi Joaquim do Amaral Pereira da Silva, recentemente falecido. Em jeito de singela homenagem, não resisto a transcrever os versos finais do Pregão de que foi autor em 1965.
"Eu quero que hoje o Mundo apanhe um susto tal
que julgue que é chegado o juízo final;
Batei-me nesses bombos impiedosamente
E vá de terra em terra o eco omnipotente,
ao ouvir do zabumba o barulho invulgar
Ninguém ouse sequer ou pense em se salvar
E toda a gente trema e sinta calafrios,
Pela espinha dorsal fortes arrepios,
O coração no peito faça desatinos
E lhe dê finalmente volta aos intestinos!
Quando amanhã, porém, passado este escarcéu,
O Mundo recomposto, olhando para o céu,
Vir que afinal de contas nada houve de mau,
Lá leia escrito a som um nome: NICOLAU!"
Efetivamente, terminado o Pregão, calados os zabumbas e as caixas, surgia, carregado de romantismo, o cortejo das maçãzinhas. Era o ponto alto das Festas, a entregar do "fruto proibido", a troca de olhares, a oferta da lança e com ela, do coração. Ritual de sedução, também o eram as Nicolinas.
Ontem, como hoje.
Livro das Danças de S.Nicolau de 1993