Arquivo: Pregão de 1945

  Pregão de S. Nicolau [Impresso] / Joaquim do Amaral Pereira da Silva.Guimarães:[CFN],1945 (imp. Minerva Vimaranense).-[1] f.: il.; 51x23 cm. Impresso s/ papel verde. Com fotografia de um estudante.
 
O Pregão do ano de 1945 é omisso quanto ao nome* do seu recitador. Apenas aparece uma dedicatória, aos velhos, feita por um estudante novo. Foi escrito por Joaquim do Amaral Pereira da Silva. A guerra, que varrera a Europa durante cinco longos anos, estava terminada.

O Mundo, esse pobre Mundo exausto,
Levantou-se da Terra ensanguentado
— Porque acima da força está a Justiça —
Gritando-A eterna, livre e insubmissa.

No entanto, finda a guerra não regressara tudo o que ela havia levado de Portugal:

Oh, sim! Ela voltou radiosa e bela
Como a luz que ilumina a escuridão!
Mas nem tudo voltou o que foi com ela...
Como sejam o arroz e o macarrão,

Neste ano, passava o cinquentenário do ressurgimento das festas a S. Nicolau. Os heróis de 1895 não são esquecidos:

E não serão, portanto, heróis também
Os “Velhos” que, há cinquenta anos atrás.
Num esforço supremo, indo além,
Num esforço titânico e audaz
Ressurgiram a Festa que ninguém
De ressurgir até aí fora capaz?
— Oh! eles são heróis, que por seu feito,
Merecem veneração do nosso preito!


Festas Nicolinas
PREGÃO DE S. NICOLAU
Aos estudantes velhos dedica, em preito de homenagem,
Um Estudante Novo.

Eis que de novo sons atroadores
Fizeram vibrar toda a atmosfera,
E uma vez mais os bombos e atambores
Disseram em alto tom que esta festa era
Como um hino de vozes superiores
Que anuncia o desfile da Primavera:
Que as Festas Nicolinas sempre são
A luz da graça e a voz da Tradição.

As nossas festas são hilariantes,
Não há iguais — o resto é arremedo...
As nossas festas são maiores que dantes!
No olvido não podem cair cedo
Porque na Guimarães inda há estudantes
Que afrontam o perigo sem ter medo,
Porque, na Guimarães, os “Capas negras”
Ainda cumprem da praxe as velhas regras.

As nossas festas são já seculares
E a Tradição o fim seu não consente;
As nossas festas são mui populares
E assim viverão, pois, eternamente;
Elas de nós são bem peculiares
Para que ninguém ouse fazer frente;
Pois risos de ironia gargalhantes
Darão como resposta os estudantes.
*
*      *
Os heróis são eternos imortais,
Os heróis filhos são da fama e glória;
Os heróis não se pode esquecer mais.
Pois deles fala altiva a nossa História;
Os heróis são espíritos geniais
E alcançam, pela honra, sua vitória;
Os heróis são aqueles que, algum dia,
Deram insignes provas de ousadia...

E não serão, portanto, heróis também
Os “Velhos” que, há cinquenta anos atrás.
Num esforço supremo, indo além,
Num esforço titânico e audaz
Ressurgiram a Festa que ninguém
De ressurgir até aí fora capaz?
— Oh! eles são heróis, que por seu feito,
Merecem veneração do nosso preito!
*
*      *
Com a luta terminou o holocausto
Que fez dos povos mar encapelado;
A tirania deu o último hausto
E o déspota caiu aniquilado;
O Mundo, esse pobre Mundo exausto,
Levantou-se da Terra ensanguentado
— Porque acima da força está a Justiça —
Gritando-A eterna, livre e insubmissa.

Depois de ter brandido o rijo aço,
Atear o fogo a coisas de valor.
Aos centos matar gente a cada passo,
E alvoroçar os peixes de terror;
Depois de ver monstros cruzar o espaço
Espalhando a tormenta e o horror,
Essa luta sangrenta e pertinaz
Findou com a suspirada boa Paz.

Oh, sim! Ela voltou radiosa e bela
Como a luz que ilumina a escuridão!
Mas nem tudo voltou o que foi com ela...
Como sejam o arroz e o macarrão,
E as batatas... cozidas na tabela;
Não voltou o presunto e o feijão.
Como o tal bacalhau da Noruega
Que se servia às iscas numa adega;

Não voltou o tabaco e o belo azeite.
Como o açúcar, o chá e o café,
Os ovos, os pepinos e o leite...
E não voltaram, meus senhores, até.
As sardinhas que são um bom deleite
E o mor prazer que é dado ao nosso Zé...
Não voltaram as pencas e os nabos...
Nada voltou... foi tudo para os diabos!

Somente Baco teve compaixão
Desta grande miséria e má desgraça;
E mandou-nos um pouco, mas bem bom
Vinho de casta pura e boa raça.
Tónico benfazejo da nação,
Ela o ingere por copo e não por taça,
— Mas alto lá! saber beber a modo
Porque senão esgota-se de todo.
*
*      *
Como agora só morre quem lhe apraz
Podemos ficar cá para a semente.
Destas coisas que só a ciência faz
E o homem tornam mais que inteligente!
Há um remédio, pois, tão eficaz
— E tal o comprovou bastante gente—,
Que sendo o maior passo em medicina
Merece ter registo: — a Penicilina.
*
*      *
A nossa terra vive em bom progresso
— E mais do que nunca ela o tem agora —,
É formidável, faz quase um sucesso,
O que se vê, meu Deus, a toda a hora!...
São os projectos bem dignos de apreço,
Um ideal que surge ou revigora;
E porque a grei a nossa Terra exalta
Possuímos tudo, oh! nada nos falta!

Temos da Praça a obra resolvida,
A indecente carroça do correio,
A Estação, lá ao cimo da Avenida,
Num velho pardieiro sem asseio;
Temos — e para toda a nossa vida—
Uma obra que findou quando inda em meio,
E que recorda, a quem chegue de fora,
Os efeitos das guerras más de agora.

Temos, sim, do “Vitória” o seu emblema
Que nos diz ser de novo campeão;
Tem-se da água o sério problema
Que parece não ter já solução
A não ser que, já na miséria extrema,
Chuva venha a cair do pé prà mão...
Quem o resolver certo, num papel,
Receberá um prémio — o de Nobel.

Temos um bom Hotel, já projectado,
Da “Garantia”; Parque para crianças,
Campo de futebol mui bem relvado,
E um novo Matadouro... dc esperanças!
Mas se nos é dado olhar para o Passado,
As dúvidas virão e as desconfianças,
Para dizerem que este ou outros projectos
Reservados serão aos... nossos netos.

Temos também — progresso sem igual! —
Uma Agência nocturna em informações
Feita à esquina do “Banco Portugal”,
Isenta de despesas ou... “palões”.
Ali podem saber tudo tal qual
De cada um — a vida ou condições—;
Até, decerto por artes do Demónio,
Saber quando casou o... nosso António.

Ao meio do Toural, tão soalheiro,
O velho Chafariz é... um relvado;
Temos de Portugal, o Rei Primeiro,
Junto do seu Castelo, todo irado
Por à noite não ter um candeeiro
Com que se veja bem iluminado.
Temos — como tudo isto me arrebata! —
Os cães pelos jardins a alçar a pata.
*
*      *
Estatutos, com já trezentos anos,
Às tantas, meus senhores, rezam assim:
— “Por motivos ocultos e arcanos.
Quem não tiver seis meses de Latim,
Sapateiros, Caixeiros e Marçanos,
Mensuradores de chita e de cetim,
Proibida lhes será, como vedada,
Nas Festas Nicolinas a entrada”.

E sendo justa a Lei, há que a cumprir.
Deve pôr-se de fora esse, pessoal
E que na festa não queira intervir
Porque senão... estaremos, então, mal.
E se está para assim, não vai discutir.
É um dogma, um dogma bem real.
Negócios, pois, à parte e sempre amigos
Com paciência a haver... mas não há figos.
*
*      *
Lembra-se ao alfaiate o material
Capaz, e que ao ofício seu condiz:
Ou sejam as tesouras e o dedal,
As agulhas, as linhas e o giz;
Que ponha tudo à mão, pois quando tal.
Um período virá... assaz feliz,
Bem próprio para ganhar muitas patacas,
Em que só poderão... virar casacas.
*
*      *
Bizarras costureiras! a nossa alma
Sente por vós sentida adoração!
Por vós inquieta está e sem a calma
Que faça vislumbrar a sedução.
Em graça nos levais a boa palma
Que venha acalentar o coração.
— Acalentai-o, pois, que se vos ama,
Ardereis no calor de forte chama.

Senhoras! Vosso meigo e terno olhar
É o intenso foco que irradia
Luz mais brilhante e clara que o luar
Em noites belas, calmas de magia...
Vosso sorriso grácil e sem par
É bálsamo que a dor nos alivia.
Vós sois o sol da graça e da beleza
E um dom alentádor da Natureza.
*
*      *
Colegas, preparai-vos para a luta!
Batei-vos por Minerva com ardor!
Vossa vontade seja resoluta
E Nicolau, no Céu, o Protector...
Nos zabumbas cascai com força bruta
Para que estremeça o mundo com o fragor,
E pense que o trovão que assim ribomba,
Tem o poder “atómico” da... bomba!

1945.
Joaquim do Amaral Pereira da Silva

Transcrição e comentários de António Amaro das Neves
Publicado originalmente em http://araduca.blogspot.pt/
Um blogue de
António Amaro das Neves
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*Heloísa Pereira da Silva, notária em Torres Vedras, filha de Joaquim do Amaral Pereira da Silva, o autor, o primeiro que fez entre outros pregões, confirma como sendo do seu pai a foto impressa, ao tempo, com 17 anos, .
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