Arquivo: Maçãzinhas em tempos idos...

Foto gentilmente cedida por: José Isidro Puga Lobo 
 Maçãzinhas (mais fotos em arquivo)
 
A entrega das «Maçãzinhas» às damas - seu significado poético
por A.L. de Carvalho no livro "S. Nicolau dos Estudantes"
De todos os números das Nicolinas aquele que mais vale pelos seus efeitos espectaculares, pela sua graça e gentilesa, é a oferta das «Maçãzinhas» às damas (Estas «Maçãzinhas», como em açucarado diminuitivo as denominam, também são conhecidas por «maçãs dos estudantes»).O prosaismo da época actual não se apercebe da elegância, do feminil encanto deste «torneio».
Essencialmente consagrado ao eterno feminino, não admira que, para ver passar este cortejo as janelas se guarneçam de senhoras, ou mais destacadamente, de meninas, pois são estas, em nossos dias, as que mantêm a tradição, colaborando com a sua presença e a permuta das suas lembranças, na linda festa de cunho medieval.
Na verdade, para bem se colher uma ideia do encantamento poético deste número das Nicolinas, torna-se preciso reconstituir o panorama romântico dos tempos idos. Nessa visão do passado, a mulher é entrevista por detrás de janelas com rótulas - «rançoso e melancólico uso das rótulas de pau que os antigos portugueses, no dizer de um monógrafo portuense do século XIII, se figuravam recatar a honestidade de suas famílias».
Não eram janeleiras as mulheres dos séculos pretéritos. Ao facto se refere um poeta espanhol, dizendo:
«Toda a donzela, de casa não sai, até que se caza.
Quando lograva pôr na rua o seu pé, ia sempre acompanhada.
O seu próprio guarda-roupa, excessivamente discreto, ajudava a ocultá-la.»
A mantilha, a mantilheta, o bioco, a coca, eram peças dominantes do traje feminino.
Nos meados do século XVIII, os bisonhos veladores dos rostos femi¬ninos, eram deste modo alvejados por Garrett:
«Bioco negro
De onde mal se vislumbra raro lampejo de celeste face: oh! Quem o rasgasse!»
Só em tardes de procissão, com as ruas juncadas de ervas cheirosas e as varandas guarnecidas de damascos, as cativas donzelas se mostravam. Aliada a esta concepção de liberdade, desenrolava-se o cortejo das «Maçãzinhas», como réstea de sol esbatendo a sombra.
Anda o caso recordado nos versos do bando escolástico de 1828:
«À mais guardada e tímida donzela,
Se concede este dia de janela.»
Já vimos quais foram as origens e os primeiros personagens na entrega das maçãs às damas.
A prática deste acto era da iniciativa dos «meninos do coro» da extinta colegiada. Visavam um objectivo maneirinho. Davam maçãs, para receber qualquer outra coisa.
Por isso as maçãs eram oferecidas, prosaicamente, em açafate.
O Pregão de 1870 alude ao acto por este teor:
«Ao colher, das cestinhas p'ró regaço,
rubicundas maçãs com trémulo braço,
 raiava em vossas faces um sorriso,
que nos faz lembrar o paraizo.»

O acto dos «meninos do coro» observava-se, sem aparato público, no dia de S. Nicolau.
Aqueles «mocinhos» que o praticavam, tinham em vista, repito, receber mercê.
Transferido o costume para os estudantes, estes revestiram-no, por maneira romântica, de uma grinalda de festa. O acto passou a embelezar-se dos engalhes de galanteria
Procurando os antigos escolares na vida social vimaranense um acto de inspiração, encontraram-no naqueles esplêndidos torneios que tinham ar no rossio do Toural - espectáculos elegantes aos quais concorriam mais adextrados e garbosos cavaleiros do Entre-Douro e Minho.
É certo que na oferta das «Maçãzinhas» às damas - o número mais galhardo e gentil das festas Nicolinas - não se observa luta, não há desafios, não se ferem, sequer, competências.
Por isso, ao termo da «batalha», pode dizer-se: todos triunfam! A alegria, as gratas emoções que se experimentam neste recontro, são prémio abonde.
A divisa da juventude escolar na oferta das «Maçãzinhas», é esta:
- ser amável ao belo sexo!
Há pontos de contacto entre este número das Nicolinas e os antigos torneios de cavalaria. Vejamos a formação do cortejo escolástico para a oferta das «Maçãzinhas», é constituído por uma cavalgada de fausoso aparato. O mesmo se verificava nos antigos torneios da cavalaria medieval.
Os cavalos ajaesados com talises e gualdrapas e os estudantes ves¬indo à fantasia, têm semelhança com os «mantenedores» dos aludidos recontros, considerados à velha lei da nobreza, - «flor da cortezia, da honra e do valor».
A lança empunhada pelos lida¬dores deste número nicolino, ofertando nela a maçã, tem por igual certa analogia com o acto final dos antigos torneios, quando os cavaleiros iam ofertar na sua lança à dama do seu pensamento o troféu alcançado na liça.
Os escolares que no cortejo das «Maçãzinhas» tomam parte, usam enfei¬tar a sua lança com fitas multicores. Igualmente a guarnecem com uma espécie de «mascote».
Tanto esta «mascote» como as fitas, com legendas e bordados, são oferta feminina.
Por entre fitas multicores, sonhos... Cor de rosa
 
Mudaram os tempos. Só os personagens da cena Nicolina haviam de variar.
Nos tempos pretéritos quem mais realçava na função eram aqueles que já haviam passado pelo estudo.
Motivo porque se distinguiam com as designações de - «veteranos», «aposentados», ou simplesmente «velhos».
Este vocábulo - «velho» queria significar, apenas, «antigo».
A velhice destes comparticipantes das Nicolinas, não contava nos anos. Excluídos os casados - pois ser solteiro era condição do «foro escolástico»    podia dizer-se que nestes «velhos» brilhava uma centelha permanente de lúcida, de esclarecida mocidade.
A falange dos antigos escolares, presa às emoções da saudade, cor¬respondia plenamente ao fulgor dos vários números do programa nicolino.
O próprio cortejo destinado à entrega das maçãs às damas - aquele onde o coração parecia reanimar-se pelos encantamentos amorosos da juventude - , nesse mesmo os «velhos» não deixavam de tomar parte activa condicionada em competição com a gente moça.
Para afoitesa de ânimo se amparariam, os adiantados em anos, neste conceito colhido no cancioneiro de rezende:
«Namorar não é pecado, onde amor se não demande.»
Tudo, pois. Seria levado à conta de amor saudosista. Mero devaneio romântico.
Novas Oferendas no Cortejo das Maçãs
Madrigais às damas
As maçãs pequeninas e coradas, eram oferta predilecta e de muito simbolismo.
Outros mimos, porém, a acompanhavam.
Há 76 anos escrevia um bi-semanário da terra:
«No dia 6, verificada a posse em S.to Estevão (havendo sido extinta a «renda» em 1832, o seu levantamento em 1881, foi mero simulacro), entraram as hostes escolásticas na cidade, cavalgando famosos ginetes, distribuindo pelas damas as rubicundas maçãs..., castanhas, de mestura com amêndoas, uvas de Alicante e outras especiarias.»
(religião e pátria, N.o 1.o, 7-12-1881)
Estas «castanhas», e «uvas de Alicante», eram especiarias da famosa indústria doceira, com origem nos extintos conventos de monjas de Guimarães (em 1853, segundo Braz Tisana, n.° 292, ainda havia: 5 freiras claristas, 6 dominicanas, 15 capuchinhas).
Além destas açucaradas ofertas, ainda a «hoste escolástica... Cavalgando famosos ginetes», distribuía madrigais às damas.

Este chegou até nós, impresso, colhido num espólio antigo :
«Aceitai a rnaçãzinha,
 tão mimosa e coradinha,
como ordena a tradição.
 Esta oferta è prenda minha,
maçã pura, não daninha,
 lembrança do coração.»

O antigo escolar José António Afonso Barbosa, ainda há pouco tentou recitar-me um outro madrigal Nicolino, preso de saudade à lembrança de o haver oferecido, nos seus tempos escolásticos, como figurante no cortejo de 1899. Simplesmente a memória, tropeçando, se lhe recusou a fazer-me a exacta construção da sua ode amorosa, dos felizes tempos da juventude.
Eram da praxe os madrigais. Já o Pregão de 1828 cantava o seu uso e eficácia:
«Suspiros, sorrisos, ditos galantes,
são para na lide entrar armas bastantes.»
Por vezes, a veia satírica brotava, como se vê deste jeito de versejar:
«Venho arranjar um namoro,
Dar-lhe um ramo de violetas;
Pois há damas tão bondosas
Que até namoram... Caretas!»
(esta quadra, acompanhada de outras, respiguei-a de um impresso antigo, sem data, que se guarda no espólio dos Pregões, no arquivo da S. M. Sarmento)
Quiseram os escolares de 1902 criar estímulos, dar mais vida ao cortejo das maçãs, abrindo concurso para dois prémios, a distribuir aos que melhor se apresentassem.
Uma local inserta num jornal da terra, disse a propósito:
«a entrega das maçãs às gentilissimas senhoras de Guimarães realizou-se, aparecendo alguns estudantes ricamente vestidos em carros luxuosamente postos, sendo conferidos os prémios das senhoras aos estudantes Joaquim de Menezes e Guálter Martins, constando o primeiro de um bandolim, e o segundo de um alfinete de ouro.
(Independente - dez. 1902)

Joaquim de Menezes e Guálter Martins - que há muito partiram desta vida-, foram dois conterrâneos que se distinguiram nas Nicolinas, ampa¬rados não só pela sua mocidade como pelos seus recursos de família.
Já então, há 55 anos, rareavam os «famosos ginetes», a que alude a notícia de 1881. De onde havia de resultar que, os comparticipantes dos cortejos das maçãs, os substituíssem por carros enfeitados à fantasia - como esses que é de uso verem-se em «batalhas de flores».
Denunciando a falta dos «ginetes», o antigo estudante Jaime Sampaio venceu em 1926 a dificuldade, substituindo-o, por uma prosaica vassoura.
Outro antigo estudante - que é hoje juiz conselheiro da relação do Porto - andou às trancas e às mancas, atraz dum burro, que não se deixou montar... Se não com fiador edóneo. Neste torneio festivo travado ao geito medieval, uma reciprocidade por vezes se estabelece, permutando-se ofertas. A lança de onde mãos femininas colhem o pomo paradisíaco, é a mesma que se torna portadora de um mimo, qualquer coisa que só não é insignificância, por vir de onde vem. Tantas dessas oferendas constituem «mascotes», que os estudantes trazem por algum tempo nas suas capas, como ostentosos troféus.
«por algum tempo», disse eu, sem olvidar o que do mesmo bisarro torneio disseram os antigos Nicolinos, embalados na lembrança saudosa dos felizes dias da juventude.
Assim o rememora o Pregão escolástico de 1851:
«e por entre mil falas extremosas mil requebros d'amor, vereis, formosas, ofertar-vos o pomo lindo e liso qual o que eva tentou no paraíso.»
As «falas extremosas», os «requebros d'amor», verificavam-se, com efeito, na fun¬ção Nicolina dos tempos idos em que, a par dos moços escolares, tomavam parte os antigos camaradas, alegres e expan¬sivos solteirões que, embora fora do ensino, gozavam o privilégio do foro «escolástico», jamais renunciando ao gosto romântico dos amavios ao belo sexo, como o fazia notar o Pregão de 1866:
«Garridos anciões que, em tal festejo, não querede brincar perder o ensejo.»
Quanto ao simbolismo da maçãzinha, ele se anunciava no Pregão de 1896 por esta maneira tão explícita:
«Eva enganou a Adão com a maçã traidora;
mas as nossas maçãs, ó virgem sedutora,
não são pomos de engano ou pomos de discórdia;
vossa boca rosada aromatisa-a e morde-a,
libando na doçura amarga essa saudade
de um desejo d.'amar que tem a mocidade!
Cada um de nós è Adão, e a maçã aliança,
a árvore é o balcão, e a serpente a lança,
conquistando um sorriso, um meigo olhar bendito,
que nem o próprio Deus acusa de maldito.»
(Dr. Bráulio Caldas.)

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