Arquivo: O Pinheiro dos Velhos ou dos Novos ?

Antes do final do século XIX não havia distinção entre estudantes “no activo” e “aposentados”. Segundo o antigo Estatuto Escolástico, nas festividades a S. Nicolau podiam participar todos quantos frequentassem aulas, públicas ou privadas, bem como os que, sendo de Guimarães, frequentassem, ou tivessem frequentado, a Universidade, além de todos os membros do clero. Perderiam esse direito os que se casassem ou começassem a exercer cargos públicos ou a trabalhar em ofícios mecânicos.
À medida que se caminhava para o final do século XIX, seria visível que as festas a S. Nicolau iam sendo progressivamente assumidas por estudantes no “activo”, ou seja, por aqueles que estavam a frequentar aulas em Guimarães. Os antigos estudantes olhavam de fora para as festas, que para eles se tornaram em momentos de evocação e de saudade do tempo da juventude.
Era assim em 1895, aquando do ressurgimento das festas. Escreveu-se então, em O Comércio de Guimarães, a propósito da entrada do pinheiro daquele ano:
Atrás do “pinheiro”, vinha uma banda de música, tocando o antigo hino escolástico, hino que os velhos ouviam com vivíssima saudade e não poucos com arroubos de se lançarem nos braços da mocidade estudiosa, zombando por alguns momentos da idade que lhes vai apontando diariamente o seu ocaso.
Vai no mesmo sentido o que se escreveu no Vimaranense de 1899, também a propósito do pinheiro:
A alguns “velhos” ouvi de comoção dizerem com lágrimas de enternecimento na voz que a alegria dos rapazes os entusiasmava e electrizava fazendo-os perder a cabeça, e que a custo se continham, para não lançarem mão de uma zabumba e saltarem para o meio deles a fundir a sua “velhice” ao fogo entusiasta da sua alegria e juventude.
Em 1912, como já aqui vimos, todas as festas foram assumidas pelos estudantes aposentados. Tratou-se, todavia, de uma situação isolada, explicada pela politização da discussão à volta das festas dos estudantes, que então estava na ordem do dia. Nos tempos que se seguiram, voltou-se à antiga ordem: as Nicolinas, em especial o número do pinheiro, eram festas dos novos, a que os velhos assistiam com nostalgia e uma mal disfarçada vontade de nelas participarem, como se percebe pelo que se escreveu em 1923, no jornal Gil Vicente:
A entrada esteve boa. Muita zabumbada, muito gado, carro alegórico, etc., etc.
Até os “velhotes” foram lá meter o “bedelho”! Assim é que é. Muita harmonia, muita paz e sossego entre novos e velhos, para que a festa realce como os seus promotores tanto desejam.
Aqueles eram tempos em que a decadência das festas era visível, tendo-se agra no final da década de 1920, com a retirada a Guimarães do 6.º e do 7.º anos do Liceu. Em O Comércio de Guimarães dava-se voz, em Dezembro de 1928, a um caminho possível para a revitalização das festas:
As Festas Nicolina, que estavam na alma do povo, que para as ruas sai em massa, para ver a chegada do “seu pinheiro” desta forma perde o seu cunho de popularidade.
Mesmo é preciso, para que as mesmas não morram, modificar um pouco as diversões a fazer-se.
Se tanto for preciso, que lhes emprestem um pouco do seu entusiasmo, “os velhos”, aqueles que recordam sempre com saudade, os tempos em que as Festas Nicolinas eram tão queridas quão desejadas.
Em 1936, assinalou-se o centenário do Estatuto Escolástico. Nesse ano, não faltou no pinheiro o entusiasmo dos “novos” e o auxílio e o calor dos “velhos”.
Em 1945, a propósito das bodas de ouro do ressurgimento das Festas Nicolinas, foi dado mais um passo no sentido da apropriação do pinheiro pelos velhos. Foi constituída uma comissão de estudantes velhos, encabeçada por José de Pina, que se propôs auxiliar a Academia para dar maior brilho às festas daquele ano. E lá estarão, os velhos, no cortejo do pinheiro de 1945, massacrando as zabumbas em romagem de saudade pela juventude que já ia longe.
1953 terá sido um tempo em que este processo se acelerou. Nesse ano, os principais números das festas foram “cedidos” aos estudantes velhos. Iniciava-se uma tradição que ainda persiste. No final de um jantar de velhos no Restaurante Jordão, conta O Comércio de Guimarães, por proposta do snr. António Faria Martins, foi cantado o hino Nicolino, após o que rufaram os tambores, e todos se dirigiram para o Cano, onde fizeram a espera ao gigante “pinheiro”, que deu entrada na Cidade às 24 horas. Nesse ano, os velhos encabeçaram o cortejo do pinheiro, fazendo ecoar pelas ruas da cidade uma ensurdecedora música de Zés Pereiras.
Nos anos que se seguiram, os velhos foram reforçando o seu papel nas festas Nicolinas, em especial na entrada do pinheiro. Ao longo da década de 1960, prosseguiu a apropriação do pinheiro pelos velhos, num processo que envolveu o progressivo afastamento dos novos.
Quando, em 1972, o autor destas notas entrou para o Liceu de Guimarães, o pinheiro já era território sagrado dos velhos. Só eles podiam tocar durante o cortejo, até que o mastro estivesse erguido. A partir desse momento, caixas e bombos eram passados aos novos. Só então começaria a festa dos estudantes no activo. Esta prática era então apresentada como uma velha tradição, que alguns interpretavam como sendo inspirada em antiquíssimos ritos de passagem.
Há quem dê uma explicação de natureza política para a passagem do pinheiro para a alçada dos velhos, segundo a qual, numa manifestação de resistência a uma suposta proibição, em tempo de ditadura, os antigos estudantes teriam desafiado as autoridades, saindo à rua com o propósito de assegurar a continuidade da tradição das festas Nicolinas. Todavia, estou certo de que a passagem de certos números das festas (o pinheiro e, mais tarde, as danças) para as mãos dos velhos não terá um fundo de romantismo, antes ficando a dever-se à consciência das dificuldades dos jovens estudantes no activo em manterem viva, com todo o seu antigo fulgor, a velha chama das festas dos estudantes de Guimarães a S. Nicolau.
E eis como se percebe melhor a notável plasticidade das tradições que, para se manterem, têm que se adaptar aos fluir dos tempos.
Aqui chegados, seria interessante lançar-se a discussão acerca da hipótese de, à imagem do que acontecia na primeira metade do século XIX, eliminar a distinção entre novos e velhos nicolinos.

Fonte:http://www.araduca.blogspot.pt
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