Arquivo: Raul Brandão, A Farsa (1903), cap. III.

Véspera de S. Nicolau e toda a populaça na rua: uma mixórdia de grotesco e de caligens, de lama e gritos, de gestos confusos e de novelos pastosos que se acastelam lá no alto e barram o céu de horizonte a horizonte em pesadas cortinas sobrepostas. Vem a cerração e a chuva pegada e tão miúda que amolece o granito. Das ruas irrompem sucessivos magotes, num clamor de inferno. Na noite ressoam gritos, urros, e clarões de archotes revoluteiam tornando-a mais densa e profunda: fisionomias e gestos surgem de repente como aparições e logo se somem no pez. É uma mescla de negrume e fogo, de braços que se agitam, de doida ventania e chuva cuspinhenta. Os tambores rufam sem interrupção — dir-se-ia que o planeta estoira farto de sonho inútil — e do nada, iluminados a vermelho, brotam bamboleando e somem-se logo sem aparência de realidade, o arco medievo e a mole rendilhada da Sé, para depois a novo clarão ressurgirem só por momentos com a abóbada, o Cristo, as colunatas e os fantásticos recortes de muralha e sombras que tomam corpo e se amontoam nos vastos fundos onde o clarão não penetra. Uma derrocada em tropel, um jacto vivo de escuridão, um burgo de sonho entrevisto que o vento leva consigo.
A turba avança, a praça transborda: há milhares de bocas que gritam ao mesmo tempo. Aquele mar humano oscila, cresce, clama e dispersa-se. Quando os archotes se apagam, fica só a noite e o ruído; avivam-se os fogaréus e voltam a entrever-se as faces, as bocarras abertas pelos risos estúpidos, rasgados de orelha a orelha.
— S. Nicolau! S. Nicolau!...
É, na véspera da festa, o dia das posses, em que desde tempos imemoriais certas famílias estão na obrigação, que a populaça não perdoa nem perde, de dar, uns castanhas, outros lenha, vinho, pão, uma árvore. Forma-se o cortejo. Já estrondeiam os primeiros compassos da charanga, que desce a rua a passos marciais, archotes à frente. Um reboliço, mais berros, rufos desesperados, uivos, maltas que desaguam de outras vielas recônditas e a multidão que oscila e se espraia até à muralha da igreja. Em cima a abóbada negra do céu goteja lama e as névoas arrastam-se lentas e esponjosas, bambinela atrás de bambinela, pegam-se às paredes e deformam-nas, desagregam-se, suspendendo–se nas arestas do granito como grandes farrapos de luto. Os uivos redobram. O mesmo pé-de-vento parece que faz redemoinhar a canalha e galopar no céu os grossos novelos de fumo.
— A câmara! aí vem a câmara!...
Pendões balouçam-se, inclinam-se como velas sacudidas pelo temporal, a que se agarram meia dúzia de náufragos. Logo mais alto, se ouvem os clamores e a charanga ataca as primeiras notas duma marcha de guerra. Abre o cortejo o presidente do município, imponente e grave, com o pendão erguido; seguem-no, solenes, o Pinheiro Careca e outros tipos cerimoniosos, de sobrecasaca e chapéu alto, sob a chuva incessante. Há um vaivém: a mó de gente empurra-se e rodopia, mas organiza-se afinal o cortejo, depois de desordens e protestos; das tabernas irrompem os últimos matulas de suíças; e o céu todo lama desce, desaba, imenso, gelado e fétido, sobre a triste humanidade. Fúnebre, lá consegue o Testa, de cara rapada e olho em alvo, abrir a marcha com o pendão erguido ao vento.
O Careca pega com sofreguidão a uma borla, a charanga segue a passo cadenciado, e por último os magotes anónimos e confusos.
— S. Nicolau! S. Nicolau!...
E tudo aquilo, mar de uivos, treva, archotes, homens e fêmeas, urros e clarões, jorro desordenado e imenso, se engolfa nas ruas estreitas, numa interminável e ensurdecedora bicha. Aqui e além o fogaréu dum archote: dum lado a casaria, do outro a muralha antiga, compacta e bárbara, a que a noite dá dimensões monstruosas.
[…]
Por fim um jorro humano estaca diante dum prédio emudecido e escuro, os clamores e a música cessam e a bicha, depois de ondular, atende ansiosa. Novelos sobre novelos as nuvens continuam lá em cima a sua desordenada e eterna correria sem fito.
O pendão camarário oscila, há um baque, e, grave como quem cumpre um rito, o Testa destaca-se do grupo e avança limpando da careca o suor das grandes solenidades. Diante do prédio, no silêncio e na noite, três vezes chama:
— Cucusio! cucusio! cucusio!...
Nada. Ninguém responde, e um frémito percorre a turba que espera sempre, milhares de cabeças erguidas no ar, as bocas abertas como peixes diante da casa negra e cerrada. Para o fundo no negrume outros, e mais outros envoltos na escuridão, atendem também como quem espera um milagre. E ouve-se no silêncio a chuva cair, miúda, pegajosa, eterna. Pela fresta duma janela lá se escoa por fim uma ténue claridade — e ao fundo estremece, silenciosa e compacta, a canalha comovida e atenta, até que, avançando com imponência mais dois passos, o Testa, como quem invoca, implora e ordena, torna:
— Cucusio!...
Sente–se abrir o postigo do prédio e uma voz comovida responde afinal ao apelo:
— Pronto, meus senhores, cá está o Cucusio!...
E logo assoma ao peitoril do primeiro andar, alumiado pela chama vacilante da vela, um monstruoso traseiro — como, desde tempos imemoriais, é obrigação daquela família, na véspera do santo, transmitida religiosamente de pais para filhos, mostrá-lo à vila. A charanga ataca o hino, os tambores ao mesmo tempo rufam, os urros estrugem, o pendão oscila levado pelo Testa, no alto daquela onda, e o sr. Anacleto corre sem ver nem ouvir, desorientado.


   Raul Brandão, (1867—1930)

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